Imagem: Le Cheval roux (la guerre), Marc Chagall
por Natalia Barros
Hoje – fim de agosto – ao “perguntar”, ao google, quantas guerras existem atualmente? Leio que “segundo a ONU, existem 30 regiões do mundo com a presença de conflitos armados. A maior parte destes conflitos envolve disputas por território e inclui, dentre as motivações, diferenças étnicas, religiosas e o controle de recursos naturais. ”
Estamos em pleno campo de batalha, em várias outras guerras que não são catalogadas. Aqui no Brasil podemos enumerar algumas, também por diferenças como essas, além de outras. Muitas vezes calcadas em pensamentos religiosos distorcidos, a favor de um sistema financeiro corrupto, moralista e fascista. Quando leio Amichai sinto uma enorme lucidez onde o tempo de guerra e paz, convive num território de disputa movente. Acho que escrever poemas é uma escolha clara: optar por manejar instrumentos de trabalho e fazer maquinações. Ou, como diriam Deleuze e Guattari: o poema é uma máquina de guerra. Poemas arejam o solo, da mesma maneira que os amores e as dúvidas. Arejar a terra, dura e seca, me parece o que precisa ser feito, urgentemente, pelo maior número de pessoas, que possuem um corpo múltiplo, permeável e amante da vida.
adendo à visão de paz
Não parar depois da destruição das espadas.
Arados, não parem! Continuem a destruir
para fazer delas instrumento musicais.
Quem quiser fazer guerra novamente
terá de voltar através dos instrumentos de trabalho.
o lugar onde sempre
estamos certos
Do lugar onde sempre estamos certos
nunca brotarão
flores na primavera.
O lugar onde sempre estamos certos
É batido e duro
Como um pátio.
Mas dúvidas e amores
esfarelam o mundo
Como uma toupeira, um arado.
E o murmúrio será ouvido no lugar
onde havia uma casa –
destruída.
O homem não tem um tempo
O homem não tem um tempo
para tudo na vida.
Ele não tem uma época
para cada um de seus desejos.
O Eclesiastes não está certo.
O homem precisa odiar
e amar ao mesmo tempo,
com os mesmos olhos chorar
e com os mesmos olhos rir,
com a mesma mão atirar pedras
e com a mesma mão recolhê-las,
fazer amor na guerra e guerra no amor.
Odiar e perdoar, lembrar e esquecer,
organizar e confundir, comer e digerir
o que a história
faz ao longo de muitos e muitos anos.
O homem na vida não tem tempo.
Quando ele perde ele procura,
quando ele acha ele esquece,
quando ele esquece ele ama
e quando ele ama começa a esquecer.
A alma dele é preparada,
é bastante profissional,
somente o corpo é sempre
amador. Tenta e erra,
não aprende, confunde-se
bêbado, cego nos prazeres e nas dores.
A morte dos figos é no outono,
encarquilhados, cheios de si e doces,
as folhas secam sobre a terra,
os galhos nus já apontam
o lugar onde há tempo para tudo.
Eu quero bagunçar a Bíblia
Um avião passa sobre a figueira
que está sobre o homem embaixo de sua figueira.
O aviador sou eu e eu sou o homem sob a figueira.
Eu quero bagunçar a Bíblia.
Eu quero tanto bagunçar a Bíblia.
Eu creio nas árvores, não como uma vez acreditaram,
minha crença é fragmentada e abreviada
até a próxima primavera, até o próximo inverno,
eu creio na vinda da chuva e na vinda do sol.
A ordem e a justiça estão bagunçadas: bem e mal
estão na mesa diante de mim como o sal e a pimenta,
os frascos são tão iguais. Eu quero
tanto bagunçar a Bíblia. O mundo
é cheio de ideias boas e más, o mundo está cheio de aprendizado:
as aves aprendem com o vento que sopra,
os aviões aprendem com as aves,
os seres humanos aprendem com tudo e esquecem.
A terra não fica triste porque os mortos estão enterrados nela.
Como o vestido da minha amada não está alegre
porque ela vive dentro dele.
Crianças são nuvens
e o Ararat é um vale profundo.
Eu não quero voltar para casa
porque todas as más notícias chegam até lá,
como no Livro de Jó.
Abel matou Cain, Moisés entrou
na Terra Prometida e os israelitas ficaram no deserto.
Eu viajo na carruagem de Ezequiel
e Ezequiel dança como Miriam a profetisa
no Vale dos Ossos Secos.
Sodoma e Gomorra se desenvolvem
e a mulher de Ló é uma coluna de açúcar e mel
David Rei de Israel está forte e rijo.
Eu quero tanto
bagunçar a Bíblia.
Poemas:
Yehuda Amichai – Terra e Paz, antologia poética – editora Bazar do tempo
Traduções de Moacir Amâncio
Les Amoureux aux lilas, Marc Chagall