***Vida de professora 13: 10/5/2024.
Desde a pandemia, o tempo é como uma substância coloidal, assim como são o creme hidratante, o iogurte, o sangue, as tintas. Lembro de ter aprendido os coloides nas aulas de biologia com a professora Tereza Cristina, no magistério em 1987, e agora eles surgem para descrever o tempo. De 2020 para cá, o tempo é menos lisinho e mais um creme empelotado.
Todos os dias respondo como estamos e pergunto a alguém como estão. As amizades se intensificam no cenário de aflição e desgraça. Aquela que era um fiozinho lããã no passado – em tom pampeano para o que está longe – hoje pode ser uma corda firme que foi acionada por uma mensagem instantânea de texto ou de transferência de algum valor. Texto e pix transferem e transmitem importâncias e valores.
Tem água na torneira? Tem água no teu quarteirão? Chove aí? Dá notícias tuas: as respostas vão por caminhos diversos. Uma das primeiras que me vieram foi que o cenário é como um dominó que pouco a pouco vai sendo derrubado. Águas levando árvore, casa, carro, caminhão, banca de revista, gente, cavalo. Fendas em barragens, arranhões em morros, deslizamentos, alagamentos, invasões: uns dominós tombam rápido, outros lentamente, espraiando uma queda implacável ao cinismo, ao descompromisso e ao resumo de vida igualmente cínica, descompromissada e resumida que aceitamos ter. Uma hidrografia de dominós em queda. Rios em revolta (essa imagem é da minha colega Mariana).
Contudo, há o que não tombou, mas mudou de lugar, uma imagem para os rearranjos no desarranjo geral (foi minha orientanda Camila a imagem de que isso tudo parecia uma grande diarreia da natureza). Literalmente andando através do lodo aguado da enchente, se leva marmita, rodo, colchão, fralda, meia e água limpa. Mensagem e pix são como sacos, galões, botes, colchão inflável, patrolas e helicópteros, tudo o que possa carregar uma importância andando, voando ou flutuando devagar. Um a um e sem fazer muita onda, lentamente transfere-se o que realmente conta. Continentes e conteúdos em movimento, são inúmeras ajudas que ainda convivem com roubos e saques.
Ainda que se voe, ande ou flutue, também há a imagem da suspensão sobre algo apavorante. Muito longe do clichê de uma menina suspensa em um balanço com brilhos e flores, embaixo de nós está a areia movediça que aparecia nos filmes antigos, só que agora é lama. Areia movediça e lama têm um quê de coloides, chãos pastosos que tornam tudo a mesma coisa, sobre os quais foram erigidos condomínios inteiros de castelos privados. Entre ajudas e saques, resgates e invasões, distribuição e expropriações, generosidades e violências, abastecimentos e esvaziamentos, aparenta ser todo o regime vigente de posses e distribuições o que está em questão. O tempo é o de agora, uma lança/raio que se impõe fincada no chão do presente.
Carmen Capra é professora e pesquisadora na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, a Uergs. “Vida de professora” é um conjunto de escritos iniciados em 11 de outubro de 2018, semanas antes das eleições presidenciais. Publicados no seu perfil no Facebook, são exercícios de escrita que processam o presente pela existência como professora. Contatos: carmen-capra@uergs.edu.br, além de Instagram e Facebook.