Vida de professora, por Carmen Capra

 

 

***Vida de professora 12: Domingo 5/5/2024, 

 

enchente sem precedentes, estamos aguardando que cortem luz e água no nosso bairro. Estamos em casa e sem perdas diretas, mas vendo um jogo de dominó inteiro caindo peça a peça a cada gleba que se vai com a enxurrada, a cada dique, barragem ou represa que cede, a cada pessoa que perdeu tudo-tudo-tudo, a cada mensagem pedindo ajuda (óleo de moto para barcos, água, colchões, comida e itens de higiene, força de trabalho voluntário). Parecendo que hoje não choveria, lavando a louça fiquei pensando quando será que a gente sente uma consciência histórica.

 

Lembro de ter passado pelas movimentações pelas Diretas já, em Caxias do Sul. Estava sempre pelo centro, caminhando pra lá e pra cá, curiosando tudo e calhou que naqueles dias de 1983 passei pelo calçadão. Havia muita gente mesmo, gritando palavras de ordem e havia faixas. As caras pintadas talvez eu lembre da TV, mas gosto de pensar que as tenhas visto. Eu tinha 12 anos e talvez tenha achado que era algo como a festa dos biXos, como se chama aqui no sul quem passa no vestibular. No jornal nacional, vi que não.

 

Um pouco depois, voltei caminhando para casa pelas 8h e pouco quando na escola as freiras avisaram que não haveria aula, pois algo tinha acontecido ao Tancredo Neves, presidente recém eleito e que estava gravemente doente. A rua estava excessivamente silenciosa por onde a gurizada com suas pastas (não usávamos mochilas, ainda) e uniformes andavam no contrafluxo para aquele horário. Não sei que dia era, mas o presidente falecera em 21 de abril de 1985.

 

Em 1987, estudante no magistério do Colégio Estadual Cristóvão de Mendoza, vivi os 96 dias da maior greve do magistério estadual gaúcho. Fizemos uma ou duas manifestações na frente do colégio. Não tínhamos muita formação, pois me parece que pedíamos ao mesmo tempo a volta das aulas e dávamos apoio à greve. E tinha havido ou haveria logo a seguir, um negócio chamado QPE: quadro de professores por escola, o que fez uma reviravolta autoritária em todas as escolas gaúchas, por exemplo: uma professora já com idade ou restrições, já não sei, que tocava a salinha de xerox para estudantes, voltou a lecionar Geografia no ensino médio de um dia para o outro. 

 

Estava há anos sem fazer aquilo e acompanhamos o quanto foi horrível. Tinha uma onda bem autoritária na secretaria de educação na época e, ainda que houvesse desvios de função, aquela ordem foi muito agressiva para todos, pois é histórico no RS que faltem professoras e que as escolas que se virem como puderem.

 

Em 1988, fiz o estágio do magistério na E.E. São Caetano. Enquanto ensinava os répteis e o que era o SAMAE – Serviço de Autônomo Municipal de Água e Esgoto, minha turma de 2ª série só queria saber de cantar o jingle do Ulysses Guimarães: o velhinho é demais, ele sabe o que faz! Familiares cogitavam votar no Afif Domingos [sim sim, eu sei], era o ano das eleições presidenciais diretas. Depois foram ocorrendo tantas coisas e lá se foram 40 anos. A consciência histórica? Aumentando. 

 

Hoje, depois do almoço, saímos para ver com os próprios olhos as águas que encheram Porto Alegre. Nos lugares onde vou a trabalho, vimos contêineres de lixo só com a ponta pra fora da água. Eles são mais altos que eu, que tenho 1,58m. Vimos um rapaz indo até a pensão onde morava com a mãe, ali na baixada da Voluntários da Pátria, caminhando com água pelo peito. Água densa e marrom. Uns homens comentavam que ele não devia ir pelo meio da rua, mas pela calçada, porque os bueiros poderiam fazer alguma força e puxar ele para baixo. 

 

Fizemos mais umas fotos que, junto com as dos últimos dias, dirão para alguém que vivemos a cheia histórica no RS e fomos fazer um pouco de trabalho voluntário na triagem de roupas. Na saída, junto com a consciência histórica aumentada, a sensação: tudo aquilo – separar, ajudar, cooperar com agilidade e atenção – aprendi fazer na escola nos brechós, festas juninas, dias de temporal, eleições escolares. Fábio me disse:  as professoras sabem tudo.

 

 

 

Carmen Capra é professora e pesquisadora na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, a Uergs. “Vida de professora” é um conjunto de escritos iniciados em 11 de outubro de 2018, semanas antes das eleições presidenciais. Publicados no seu perfil no Facebook, são exercícios de escrita que processam o presente pela existência como professora. Contatos: carmen-capra@uergs.edu.br, além de Instagram e Facebook.

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