por Gabriel Biaseto
Fernanda Young nos deixou sem qualquer tipo de aviso prévio. Foi uma coisa horrorosa, súbita, esquisitíssima. Uma crise de asma levou a escritora embora, em agosto de 2019, alguns meses antes de o mundo virar completamente de cabeça para baixo com a pandemia da covid-19. Um tempo depois, Fernanda venceu, postumamente, o Prêmio Jabuti pelo livro de crônicas “Pós-F: Para além do masculino e do feminino”, prêmio que, em minha opinião, veio tarde demais – ela já tinha publicado doze livros (nove romances, um livro de contos e dois de poesia) antes disso. É, no mínimo, admirável que uma escritora assim tão jovem (Fernanda tinha 49 quando fez a sua passagem) e tão versátil – apresentadora, atriz, roteirista – tenha se dedicado com tanto afinco e paixão ao exercício da escrita.
Apaixonado por Fernanda como sempre fui, me dediquei, em 2017, à leitura de toda a sua obra, em ordem de publicação. Alguns traços são bastante perceptíveis no universo da escritora, como o fato de ela estar sempre se referindo, em alguma medida, às frustrações de sua infância e adolescência – mesmo construindo uma ficção consistente e, por vezes, maluca (no melhor sentido da palavra). É que Fernanda se desnudava como ninguém nisso que chamamos de “autoficção”. A asma – razão de sua morte – já foi personagem em diversos de seus fragmentos; era um tema recorrente em seus romances. Não só isso, mas o desabafo das angústias de sua formação escolar, que ela mesma considerava esquisita – além de todas as suas “quase” formações acadêmicas, pois a escritora havia começado diversas graduações, mas nunca chegou a terminar nenhuma delas.
Diante disso tudo, Fernanda enfiou o dedo na ferida dos moralistas e “jogou a real” com relação à orquestra de senso comum que é essa história de maternidade. Sendo mãe ou filha, as relações que envolvem a maternidade nem sempre são fáceis e doces como a mídia tenta imprimir. Em Tudo que você não soube (Ed. Rocco, 143 páginas), a narração em primeira pessoa nos traz uma protagonista que escreve ao pai idoso já próximo da morte. A carta, elemento que compõe toda a extensão do romance, é um desabafo, uma confissão e, acima de tudo, um grito: a personagem detalha ao pai os motivos que a levaram a martelar a cabeça da própria mãe.
Parece horrível. E é, mesmo. Mas, a personagem (ou seria a própria Fernanda?) é tão contundente e exata com suas colocações ressentidas e o seu rancor por ter tido uma infância e adolescência de extrema opressão, que convence o seu leitor a amá-la e até mesmo encontrar certo sentido em seu ato.
Se você não quer que sua filha se torne uma Christiane F., desculpe, deve oferecer a ela melhores opções do que as que me ofereceram. Ninguém aguenta uma realidade tão intensamente medíocre quanto aquela. Então, fumei um cigarro e achei maravilhoso. Lembro bem da sensação, que me pareceu de delícia absoluta, do meu corpo ficando dormente a partir da ponta dos dedos. Fumar escondido tornou coisas como feriados em Araruama imediatamente mais interessantes. Já que, sentada em qualquer janela, de madrugada, junto com o meu Hollywood, eu estava tendo minhas primeiras experiências no ramo em que me notabilizaria: o da ilegalidade.
O desabafo da protagonista é, para o leitor, uma espécie de liberdade escondida que, se pararmos para pensar, todos gostaríamos de experienciar. Não que tenhamos a vontade de sair por aí martelando a cabeça de nossas mães ou das mães alheias, mas a prosa de Fernanda é tão incrivelmente verossímil e catártica, que faz com que queiramos dizer a verdade acerca de tudo aquilo que pensamos e não temos a coragem de expor. É por essa razão que voltei tantas e tantas vezes à leitura (sempre atenta) de Tudo que você não soube. Um romance curto e visceral de uma escritora que não teve medo (ou talvez, corajosamente, enfrentou as suas inseguranças) de desmistificar certos moralismos que circundam a vida em família e a falsa ideia de que devemos, sem exceções, amar incondicionalmente aqueles que nos criaram.
Deixo aqui, antes do fragmento final, o meu abraço apertado à Fernanda, com quem tive o privilégio de me comunicar muito brevemente, anos atrás. E, onde quer que ela esteja, espero que ela continue, corajosamente, dizendo tudo aquilo que todos nós sempre quisermos dizer, mas nunca dissemos.
As duas, por fim, sobrevivemos, desfalecidas na mesma poça de sangue. Acho até que, no final das contas, morri mais do que ela, durante aquele ataque. Sou, depois de você, a vítima mais morta dessa história. Já que mamãe morreu de uma doença que não teve nada a ver com os ferimentos na cabeça. E eu segui meio zumbi a partir dali, ao me deixar arder nas chamas desse inferno, que é o matar a mãe sem ter matado e o existir sem me sentir existindo.
Gabriel Biasetto nasceu em Bragança Paulista (SP); é formado em Letras e pós-
graduado em Literatura Inglesa. Professor de Inglês e Língua Portuguesa, publicou,
em 2021, o romance Quando ainda era verão (Editora Patuá).