[Livros à mão] O amor é o que o amor faz, por Renata Penzani

Definições sempre me encantaram. Não aquelas que se encerram nos dicionários, mas as que viram as palavras de ponta-cabeça, vasculham o seu passado para inventar outros futuros para elas.
O amor é o que o amor faz

por Renata Penzani

Sabe quando você se reúne com três ou quatro amigos e mesmo sem combinar nem mesmo concordar totalmente chegam a um consenso de que um outro amigo em comum está precisando de ajuda, e intuitivamente se aproximam para dar um chacoalho, um puxão de orelha, um colo, um abraço? Acho que esse livro é uma espécie de situação dessas, mas num nível social e cultural. Então, imagine uma faixa em volta da capa. Isto é uma intervenção! Estamos amando muito errado. 

 

Onde está o amor? Essa “força tão real quanto a gravidade”, nas palavras do médico, professor e escritor indiano Deepak Chopra. Para onde ele correu quando gritaram “fujam para as montanhas”? Terá ido mesmo para as montanhas, ou deitou perto porque estava cansado? Quem sabe esteja dentro do “suchá” de maracujá que você toma enquanto tenta se concentrar para ler esse texto (e eu para escrevê-lo; vai saber quanto tempo separa uma coisa da outra). Talvez o amor não esteja nos poemas mais bonitos, nem nas respostas absolutas, certamente não está na janela de trás do vidro do ônibus quando você dá tchau a alguém que não vai tornar a ver em 1 ano e meio. Podem ser seus pais, um amigo, uma irmã. Que a pandemia nos isolou em nós mesmos não é novidade. O que ainda estamos tateando são os efeitos disso. 

Do meu lado, sem ter por perto muitos dos que considero meus afetos, tenho pensado muito sobre o amor. E seria só sobre ele – o amor – este texto, não fosse principalmente sobre um livro que trata do tema com uma honestidade jamais vista (ao menos, pelas minhas vistas): Tudo sobre o amor: novas perspectivas, da professora e ativista norte-americana bell hooks (assim mesmo em minúsculas, como ela prefere ser identificada), publicado no Brasil pela editora Elefante. 

O título do livro se debate em uma ironia necessária, se você quiser realmente entender o que ele diz. “Tudo”, “sobre” e “amor” só podem aparecer na mesma frase se for um sarcasmo, ou pelo menos uma abstração, uma provocação. O amor é tudo aquilo sobre o qual nunca poderemos saber tudo. E isso sim é tudo. Veja só que ironia. No entanto, tentamos, que é o que fazemos nessa vida todos os dias, não é mesmo? 

Se você leu até aqui, provavelmente já venceu três ou quatro ímpetos de ir fazer outra coisa. Há todo tipo de coisa capaz de nos distrair e realmente nos convencer do que quer que queiramos ser convencidos. O amor é uma delas. 

Se você foi socializada em um corpo de mulher que performa feminilidade em uma família patriarcal heteronormativa, como eu, aposto que poderia colecionar situações tipicamente disfarçadas de amor. Como quando as pessoas à sua volta te diziam que a distância emocional masculina era natural, “coisa de homem”, e que as mulheres precisavam contornar essa falta se quisessem ser amadas (é óbvio que elas queriam; queremos todos). 

Muitos de nós crescemos tortos para o amor: incapazes de dar, desesperados por receber. Ou um contrário perverso disso: desesperados para dar, incapazes de receber. Quando não uma combinação cruel das duas coisas: incapazes de dar e de receber. Sobre isso já se debruçaram infinitas pessoas, da psicanálise à terapia quântica, passando pelos poetas, os loucos e os cantores de barzinho. Ninguém pode ter razão. Todo mundo pode ter razão. 

“O amor é o que o amor faz”, diz a bell hooks neste livro. Li de novo, e de novo e de novo. 

Fiquei dias pensando nessa frase. Ela propõe pensarmos o amor não como um sentimento, mas como uma ação. E isso muda tudo. 

Uma ação que deve estar obrigatoriamente vinculada a alguns elementos indissociáveis do amor: responsabilidade, confiança, respeito, compaixão. E aqui vale colocar um marca-texto imaginário: o amor de que ela fala não é o amor romântico (ou seja, não é o amor romântico), mas o que ela chama de “ética amorosa”, uma conduta que podemos escolher em todas as nossas interações, dos amigos íntimos ao atendente do consultório que nunca vimos na vida. O amor como um afeto político que um dia nos toma e no outro nos convoca a tomar por ele. O amor em seu sentido mais alargado e potencializado. 

Ou seja, um amor com mais consciência – de si, do outro, do coletivo e do nosso mundo interno. A ética amorosa seria assim um modo de obter algum controle sobre a violência que nos chega e nos atravessa. Todos os dias. “Nao há um amor especial reservado exclusivamente para parceiros românticos. O amor verdadeiro é a base de nosso envolvimento com nós mesmos, com a família, com os amigos, com companheiros, com todos que escolhemos amar. (…) Quando amamos corretamente, sabemos que a resposta saudável e amorosa à crueldade e ao abuso é nos retirarmos do caminho dos danos”.

Meu primeiro movimento foi botar essa frase embaixo do braço e voltar com ela para algumas cenas vividas. Para repensar como meus gestos mais práticos e diretos (ligar ou não ligar, perguntar ou não perguntar, escutar ou não escutar, fugir, ficar, silenciar) demonstravam meu amor, ou a falta dele. Depois, pensei se, nas vivências que eu tive, o amor que interpretei continuava sendo amor, se revisto por essa perspectiva. Nos dois casos, percebi muitos nãos e muitos sims (não é estranho que essa palavra seja tão inconcebível no plural?). 

Se já sabíamos pouco antes, agora que vivemos essa experiência máxima e coletiva do isolamento de tantos laços que nos uniam a comunidades familiares e sociais, talvez saibamos menos ainda. Dá medo saber pouco sobre amor, e para driblar esse medo somos capazes de reafirmar todos os dias que sabemos tim tim por tim tim. Não é à toa que a bell cutuca tão fundo nesse ponto. “Usamos a palavra amor de forma tão desleixada que ela pode significar quase nada ou absolutamente tudo”. Meu coração entrou em estado de exclamação quando li esse trecho. Como não se identificar com essa ponte entre o tudo e o nada? 

Ainda assim, já que o livro precisa continuar, a autora escolhe uma dentre tantas definições possíveis em que se apoiar. É na verdade uma citação de um psicanalista e filósofo alemão, o Erich Fromm, famoso por suas influências humanistas e socialistas. “O amor é o que o amor faz. Amar é um ato da vontade. Isto é, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”. A autora parafraseia a si mesma algumas vezes ao longo do livro, como se quisesse desfazer aos poucos o impacto nocivo de décadas de educação patriarcal, e utiliza uma outra definição do mesmo pensador: “[O amor é] a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”. 

E aí vem a parte divertida-dolorosa, a depender do ponto de vista (risos): muito do que conhecemos por amor talvez não se sustente depois que enxergamos a coisa toda por essa perspectiva. “Todos amaríamos melhor se pensássemos o amor como uma ação”, diz a bell. Mas muitas experiências supostamente amorosas podem ter apenas outro nome. “Catexia”, por exemplo. Uma palavra que eu não conhecia e – meio masoquistamente – gostei de aprender 

“Quando nos sentimos profundamente atraídos por alguém, dedicamos energia mental e emocional a outra pessoa. Esse processo de investimento em que a pessoa amada se torna importante para nós é chamado de catexia. Todos sabemos que indivíduos que se sentem conectados a alguém pelo processo de catexia frequentemente insistem que amam a outra pessoa, mesmo magoando-a ou negligenciando-a. O que eles sentem é catexia, mas insistem que é amor”, escreve bell.

E por que fazemos isso? Pelo mesmo motivo que aparentemente fazemos muitas coisas: por medo. “Para a maioria das pessoas, é simplesmente ameaçador demais aceitar uma definição de amor que não nos permitiria mais identificar o amor em nossas famílias”. 

Então, de tanto não saber o que é o amor, ele passa a ser uma ausência que precisamos esconder (inclua aqui um efeito sonoro explosivo). “Muitos de nós se sentem mais confortáveis com a ideia de que o amor pode significar qualquer coisa para qualquer um precisamente porque, quando o definimos com precisão e clareza, isso nos deixa cara a cara com o que nos falta – com uma alienação terrível”. 

Essa alienação pode ser a família onde crescemos, a comunidade que construímos, a relação amorosa que relutamos em manter, nossos círculos de amizade, ou o próprio protocolo do que pensamos ser o autoamor ou autocuidado (que tantas vezes é só autoindulgência, sabemos bem). 

Então, só para não dizerem injustamente que o livro da bell é só pancada na cara, embrulho no estômago e desamparo (porque não é! longe disso, inclusive), deixo aqui algumas sugestões que ela menciona como caminhos possíveis para o amor. 

Abre aspas para a mestra bell hooks, aqui organizada em uma lista inventada: 

– Podemos viver com simplicidade. 

– Podemos trabalhar para transformar políticas públicas.

– Podemos desligar a televisão.

– Podemos demonstrar respeito. 

– Podemos parar com o desperdício.

– Podemos reciclar.

– Podemos resistir à ganância (que é o caminho contrário do amor).

– Podemos celebrar e honrar o comunalismo e a interdependência, compartilhando recursos.

– Podemos escolher intensificar nossas capacidades de amar. 

No fim das contas, se “o amor é o que o amor faz”, tudo o que ele intencionar fazer já será, de antemão, metade amor. O amor que cultivamos permanece em nós, mesmo quando passa para o outro. Só assim, como diz a bell hooks, “fazemos de qualquer lugar um lugar em que podemos regressar ao amor”.

 

        

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