A Travessia do Grande Sertão: Veredas

por Liliana Pardini

 

Ouvia falar muito desse livro. Até demais! Chegaram a me contar um dos seus segredos, o que é uma sacanagem com quem ainda não leu. Eu já tinha tentado entrar no Sertão duas ou três vezes. Caminhava até a página 50 mais ou menos, onde parecia haver uma fronteira. Os espinhos da caatinga, o chão pedregoso me arranhavam, mesmo achando estar vestida com a jaqueta de couro mais resistente.

Num curso, em que tínhamos de levar uma frase de um livro sobre o amor, 95% dos participantes citaram o Grande Sertão. Fiquei estarrecida comigo mesma por ainda não ter lido. Uma amiga que fiz nesse dia, a poeta Raquel Guimarães, que, como eu, estava no grupo dos 5% que não citou o Sertão, me deu de presente a frase que ela trouxe, da Maria Gabriela Llansol.

Três anos depois, nós nos encontramos, ainda que virtualmente, aqui n’A Casa Tombada, na pós Gestos da Escrita. Onde reencontrei também uma amiga da época da faculdade de direito, a Patrícia Piva. Um dia, a Pati comentou com a Raquel e comigo que havia lido esse livro. E a Raquel e eu admitimos essa nossa lacuna literária. A Pati topou ser a nossa guia. Generosamente releu o livro com a gente, mostrando a trilha entre as veredas.

Que grande sorte a minha! Ter essas duas amigas jagunças com alma de passarinho nessa aventura, num momento em que eu estava um pouco mais (des)preparada para ser menos, para deixar meu ego pendurado no cacto da fronteira, mais esvaziada para aprender uma língua dentro da minha própria língua, com a pele mais fina para que o livro pudesse me ler.

Grifamos trechos, às vezes coincidentes, às vezes descobertos pelos olhos uma da outra. Nos encontros semanais, o livro ganhava ainda mais camadas, cores, sentidos.

Grifos que quero bordar em mim. E compartilho aqui alguns (sem risco de revelar os grandes segredos), com o desejo que aguçar o seu espírito de aventura para se encontrar no Sertão, ou relembrar essa viagem de vida inteira.

“As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas”

“O diabo é às brutas.

Deus vem vindo

ninguém não vê.

Ele faz é na lei do mansinho.”

“Amor vem de amor. Diadorim é a minha neblina.”

“Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros.”

“ o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”

“eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.”

“Tomei em mim o gole de um pensamento.”

“Amizade dada é amor.”

“Pudesse tirar de si esse medo de errar, a gente estava salva.”

“Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava.”

“Me lembrei do não saber.”

“Aquilo dava um sutil enorme.”

“Diadorim vivia só um sentimento de cada vez.”

“ O que eu quero é na palma da minha mão.”

“Só o que restava para mim, para me espiritar — era eu ser tudo o que fosse para eu ser.”

“As coisas que eu tinha que ensinar para a minha inteligência.”

“Amor é a gente querendo achar o que é da gente.”

“A gente só sabe bem aquilo que não entende.”

“Quem mandava em mim já eram os meus avessos.”

“Natureza da gente não cabe em certeza nenhuma.”

“Desgarrei da estrada, mas retomei meus passos. Ao que tropecei e o chão não quis minha queda.”

“Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”

Pedi para minha guia ler este texto antes de enviá-lo para o blog, ao que ela acrescentou mais 3 grifos-presentes:

“Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.”

“Só quando se tem rio fundo, ou cava de burado, é que a gente por riba põe ponte… . ” 

“Mas, por cativa em seu destinozinho de chão, é que a árvore abre tantos braços.”

Agora sim.

 

 

Grande Sertão: Veredas

João Guimarães Rosa

Companhia das Letras, 2019