Um desejo de partilhar o que lê

Logo se percebe que Simone Paulino está à vontade nesta Casa. Professora da disciplina do Laboratório de Escrita Literária do curso de pós-graduação O Livro Para a Infância, ela acompanha os passos d’A Casa Tombada desde a abertura, sempre atenta aos livros espalhados pelo espaço, um detalhe novo na decoração, um aroma de café. E é justamente na cafeteria que ela, na companhia do escritor Wagner Schwartz (Nunca juntos, mas ao mesmo tempo, livro do catálogo da editora dela, a Nós), espera a arrumação final da sala onde será a sua apresentação: o papo é sério, falam de política, de Brasil, e seus olhos ora demonstram preocupação, ora sorriem acompanhados de gestos leves. Está mesmo no “seu lugar”.
Um desejo de partilhar o que lê

Mestre em literatura e à frente da Editora Nós, Simone Paulino convida a pensar o desejo de ler a partir da sua própria experiência. Confira o segundo encontro do ciclo de palestras d’A Casa Tombada

 

Por Ana Carolina Carvalho *

 

Logo se percebe que Simone Paulino está à vontade nesta Casa. Professora da disciplina do Laboratório de Escrita Literária do curso de pós-graduação O Livro Para a Infância, ela acompanha os passos d’A Casa Tombada desde a abertura, sempre atenta aos livros espalhados pelo espaço, um detalhe novo na decoração, um aroma de café. E é justamente na cafeteria que ela, na companhia do escritor Wagner Schwartz (Nunca juntos, mas ao mesmo tempo, livro do catálogo da editora dela, a Nós), espera a arrumação final da sala onde será a sua apresentação: o papo é sério, falam de política, de Brasil, e seus olhos ora demonstram preocupação, ora sorriem acompanhados de gestos leves. Está mesmo no “seu lugar”.

Não seria de outro jeito. Simone Paulino, que além de professora, é jornalista, escritora e está à frente da Editora Nós, que ela mesma criou em 2015, estava n’A Casa Tombada, dessa vez, não para dar aula, mas para participar do segundo dia do ciclo de encontros Como Nasce o Desejo de Ler. E ela, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, com grande experiência no mercado de livros, comoveu quem estava ali. Sua opção foi relatar o encontro pessoal com o livro e a literatura. Mas só não no começo, na infância. E sim a partir de uma sucessão de encontros que ela teve, tem e não para de ter que já a levou a caminhos e temas muito diversos para ler e escrever. Para ela, vem daí o seu (eternamente renovado) desejo de ler.

Foi impossível não se emocionar com o relato ali exposto ao público. Sim, porque a leitura, a escrita, a literatura não surgiram fáceis na sua rotina. Em uma época que defendemos que se leia para os bebês desde a barriga e que as crianças tenham contato irrestrito e prazeroso com o livro sempre, Simone conta que sua mãe era analfabeta. Na sua casa, não havia livro de tipo algum – “Nem mesmo a Bíblia!” –, nem jornal, nem revista. A professora provoca a plateia: “Como nasce o desejo de ler em uma pessoa que vem dessa realidade?”.

Ela reconhece que teve a sorte de encontrar pessoas que souberam lhe apresentar, cada uma à sua maneira, a palavra, as narrativas, os personagens, os grandes escritores. A primeira grande descoberta sobre o vasto universo das letras foi com a cartilha Caminho Suave.  Ela mesma, um “método ultrapassado de alfabetizar”, como Simone nomeou, a seduziu para o que era poder ler e escrever. Ali, diz Simone, abriu-se uma janela para o mundo – janela esta que só faz aumentar e hoje é escancarada para um mundo que ela procura traduzir nos seus escritos e nos escritos dos outros que publica pela Nós.

Depois de alfabetizada, a primeira lembrança mais forte é o clássico brasileiro Marcelo, Marmelo, Martelo, de Ruth Rocha, o grande perguntador das coisas já postas. Depois, conheceu Pollyanna, o clássico mundial de Eleanor H. Porter (“Preferia ter conhecido primeiro Alice, a do Lewis Carroll”, confessou ela, em risos, minutos antes). Não tardou para que se rendesse a Zuenir Ventura, Ruy Castro, Flaubert, Borges e Clarice Lispector, entre tantos outros, mas esta última uma companheira inseparável.

Para a menina de Guaianazes, periferia da capital paulista, parecia que o máximo que poderia se tornar era professora. Foram sucessões de pessoas e leituras, de escritas e uma ousadia determinada que a transformaram na editora reconhecida, que não deixa de valorizar suas raízes e de defender o acesso universalizado à educação. A partir de sua própria história, critica a ideia de que a criança que nasceu na periferia não pode ser boa leitora. “Os nossos esforços são sempre muito bem-vindos, claro, mas tem também ali uma fagulha, uma partícula desse processo que é um pouco inapreensível: tem gente que tem biblioteca em casa e que não vai gostar de ler.” Porém, reconhece que ela mesma é exceção e brada que todos têm o direito da aquisição da leitura e da escrita. E que tenham acesso ao livro.

Suas caminhadas como editora, para encher seu catálogo de novidades, também se norteiam pela Simone-leitora. “A minha aposta não é necessariamente no que vai vender, mas no que precisa ter o mundo. Ou seja, esse livro o mundo precisa ter. Esse livro eu queria que os brasileiros lessem. É um pouco assim que acontecem as escolhas.” Para ela, então, antes de tudo, editar é um ato de ler. “Mas, muitas vezes, não é uma leitura solitária. É uma leitura compartilhada: você edita uma coisa que o outro leu e diz para você: leia. Foi o que aconteceu com Wagner Schwartz”, aponta Simone para o escritor presente no encontro, que tinha uma história para publicar há muito tempo e a mostrou ao professor da Sorbonne Leonardo Tonus na Primavera Literária Brasileira de Paris (evento criado por Léo com a proposta de levar autores de literatura brasileira contemporânea à capital francesa todos os anos).

“Toda a minha vida foi impulsionada pela leitura. O processo de ler é o meu motor”, diz ela. Dessa engrenagem construída com tantas histórias e inúmeros personagens, Simone tornou-se escritora, ainda exercendo escritas como jornalista. Do jornalismo para o estudo mais aprofundado da literatura foi um passo breve. “Tenho um amigo que diz que os escritores nos ajudam a atravessar a rua. Levam-nos de um ponto a outro. Foi Clarice, por exemplo, quem me ajudou a dar nome a muitas coisas que eu não entendia. Eu tinha perguntas, como por que eu sou eu, que não podia fazer para a minha mãe.”

Complementa: “A literatura ajuda a gente a viver”. Como não poderia ser diferente, Simone transformou a história da sua mãe no livro O sonho secreto de Alice e a experiência da convivência sempre tão desejada com Clarice Lispector em Como Clarice pode mudar a sua vida (o primeiro lançado por seu antigo local de trabalho, a DSOP, e o segundo, edição do catálogo da Buzz, para a qual trabalha como editora).

O tempo passa rápido e faltam poucos minutos para o fim daquela noite. Mas Simone tem mais histórias para contar. Quem a ouve não quer que acabe. Ela conta como conheceu a autora Aline Bei, de O peso do pássaro morto, um dos livros da Editora Nós que mais vende. Seus olhos brilham ao falar do talento da escritora e da preciosidade da obra que está concorrendo ao Prêmio São Paulo de Literatura. Acaba. Nós nos juntamos todos para pegar nas mãos os livros que ouvimos sobre seus nascimentos. Talvez alguém tenha saído dali com um O peso do pássaro morto embaixo dos braços. Talvez Simone seja uma mediadora: uma mediadora de livros, só que antes do livro estar pronto. E segue sonhando que outros desejos de ler nasçam a partir disso.

 

* Ana Carolina Carvalho é jornalista há mais de 20 anos, mãe de de dois meninos e aluna do curso de pós-graduação O livro para a infância desde fevereiro deste ano.

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