por Eric
Meu avô contava duas histórias para minha irmã e eu. A primeira era uma marchinha de carnaval, onde a letra mostra um diálogo entre o eu lírico e uma jardineira triste pela morte de uma camélia. Quando me lembro do meu avô cantando essa música, um percurso de imagens me vêm à mente. Com uma chaleira cheia de água quente, ele anda pelo caminho de tijolos que divide a horta de sua casa, vai até o fim do caminho onde, no lado direito, existe uma construção velha de madeira que serve como marcenaria e abrigo aos carneiros. Faz sol e a luz invade o local pela parede lateral formada por treliças de madeira, permitindo a visão da poeira dançando nos feixes de luz alaranjada. Meu avô vira à esquerda, pisando na terra e, nesse momento
o sol desaparece,
cerração toma conta do espaço deixando o ambiente frio e pálido. Ele segue até o pé de duas árvores de tronco fino e despeja a água fervendo em um formigueiro. Uma rosa branca que está plantada ali em frente murcha, e aos poucos, morre junto das últimas palavras cantadas por meu avô de chaleira vazia.
A segunda história era sobre um João que morreu por preguiça de descascar uma banana, lida em um livro didático surrado. Visitei minha memória a um tempo atrás, uma velha casa que tinha um único cômodo. Era quadrado, suas paredes estavam desbotadas e tinha pequenos labirintos desenhados pelos cupins no chão de madeira. Andei até a única cadeira da casa: no percurso, pelo canto do olho, eu podia ver diversos objetos entulhados que ocupavam o cômodo, mas se eu olhasse diretamente para algo que não fosse a cadeira, o lugar voltava a ser vazio. Sentei na cadeira. Então eu segurava aquele velho livro impresso em papel jornal, que parecia menor do que quando meu avô o segurava. Gosto de pensar naquele objeto como o primeiro livro que abri quando criança. Não foi, mas gosto de pensar. Os livros e as histórias carregam boa parte de mim. Eu faço livros, e eles ocupam espaços.
Ainda na infância, pude criar solos macios, como camas, para sonhar o que quer que brotasse do chão que cresci. É importante dizer que aquele lugar rodeado de mato e de cigarras está muito presente na minha trajetória como contador de histórias. “Lá longe” nasceu aqui nesta memória:
A memória é uma amiga que conta mentiras e eu tenho boas memórias sobre meu avô. Neste livro, o “Lá longe”, proponho uma narrativa incerta, investigando o que o narrador lembra do tempo que passava com seu avô. O livro é uma reedição de publicação feita em 2019. Composto por gravuras em linóleo e texto datilografado mostro uma memória que se perdeu dentro de mim. A primeira edição teve um único exemplar, de 15 páginas impressas em papel artesanal.
Meu avô costumava fazer caminhadas quase todas as manhãs. Era um corpo grande que foi perdendo a força, fazendo com que seu próprio tempo o ancorasse na pequena área da casa em que vivia. Relato esse gesto diário daquele homem, com mobilidade reduzida por conta da idade, e com forte introspecção, que caminha até uma cadeira, senta e observa o que pode ser visto. Não me lembro bem quando aconteceram os eventos narrados no livro. Decidi mostrar essa falta de memória, omiti a imagem dos corpos deixando apenas o lugar que eles ocupavam e propus diálogos para diferentes momentos da vida dos personagens.
A imagem acima serviu como uma das referências visuais para as gravuras feitas em linóleo, que ilustram o livro. O grande campo que ficava em volta da casa era observado por horas e meu avô passou os últimos anos de sua vida sentado na cadeira da imagem acima que ainda ocupa o mesmo espaço entre a janela e a porta da casa. Eu me sentava ao lado dele, em um banco comprido usado para acomodar as pessoas no almoço de domingo.
Na nova edição, algumas escolhas técnicas foram alteradas. Pensando em uma possível tiragem, o papel escolhido para o miolo e capa de livro foi o offset de gramatura 150, diferente da primeira edição, onde foi utilizado um papel artesanal responsável por parte da atmosfera narrativa, que por sua vez, acabaria tornando a reprodução em uma maior escala cara e inviável. Mas como fazer com que essa mudança fosse um ganho para a narrativa? Foi então que recorri ao chão.
Usando argila em pó, fiz o livro ocupar outros espaços. Após realizar a impressão das gravuras adicionei o pigmento ainda na tinta fresca, criando manchas e texturas. Depois da costura e encadernação, mais uma quantia de argila foi lançada ao papel, ficando livre em meio às páginas de maneira que a terra passa a se tornar parte do livro e expandir o espaço narrativo através da interação com o leitor.
Agora o papel não possibilita apenas a referência visual do campo observado pelo personagem da história, mas dá corpo literal a lembrança, que fica marcada, deixa vestígios e com um sopro, um virar de página, já não está mais ali. A fala do avô também ganha presença através da argila, pois descrevo no livro a voz do personagem como terra quieta. Alguém que pelo texto quase não fala, faz pela materialidade, sua voz cantar entre o pulsar das páginas. A textura perdida do papel artesanal foi substituída pela da argila, que mancha os dedos e deixa vestígios, como qualquer leitura deve ser.
Obs.: Essas reflexões tomam forma na oficina da professora Camila Feltre, na pós O Livro Para Infância.
O Eric gosta de fazer livros. Experimenta de tudo um pouco juntando palavra, imagem e materialidade. Graduado em artes visuais e se especializando na casa tombada, gosta de construir histórias investigando identidade e memória. Para conhecer mais do seu trabalho acesse: https://ericsponholz.myportfolio.com/