[Saberes d’A Casa] A Casa, lugar de encontros, por Damiane Niomara

Definições sempre me encantaram. Não aquelas que se encerram nos dicionários, mas as que viram as palavras de ponta-cabeça, vasculham o seu passado para inventar outros futuros para elas.
A Casa, lugar de encontros, por Damiane Niomara

 

por Damiane Niomara

 

 

A morte de Natálio

Eram doze os moradores da grande casa de sapê, a mãe Maria da Conceição, o pai Juvenal de Oliveira e seus dez filhos. Todos cuidadores e amantes da terra. Uma bica d’água e algumas bananeiras eram a vizinhança.

Todos trabalhavam em um grande cafezal que ficava em uma fazenda distante, para chegarem ao trabalho caminhavam cerca de uma hora. Acordavam bem cedo e seguiam o longo caminho descalços, afinal sapatos eram artigos de luxo para pessoas como eles. A estrada era cansativa, passavam por mato, terra, ao chegar no cafezal pisavam em cobras. Trabalho árduo, uma sina dura, mas em 1940 a vida era assim.

Certo dia, Natálio, o segundo filho do casal fora picado por uma cobra. Correram o mais rápido que podiam para casa. Maria gritava desesperadamente:

– Façam um esteio para Natálio. Rápido!

Tudo foi preparado, fincaram quatro pedaços de madeira no chão e por cima uma esteira, deitaram Natálio com todo cuidado. Não havia médico, enfermeiro, somente as orações e receitas de Maria. Os esforços foram inúteis. Natálio faleceu ao amanhecer, com 21 anos. Muito jovem para morrer, era difícil de entender o porquê de tanto sofrimento, triste, mas em 1940 a vida era assim.

História contada por Alípio e José. Filhos de Maria e Juvenal de Oliveira, moradores da grande casa de sapê.

 

A Casa Tombada, um lugar de encontros. E como é importante a ação de encontrar, gestos, pessoas, lugares, penso que de certa forma quando encontramos algo achamos a nós mesmos, um pedaço para compor o nosso todo. A casa na nuvem hoje é isso, a cada aula, ateliê, fala dos componentes da minha querida matilha, sinto que construo um pedaço de mim.

No terceiro encontro da Pós Gestos de escrita – A escrita como prática de risco fui gentilmente convidada a olhar para a vida de uma nova forma. Giuliano Tierno apresentou o texto O narrador de Walter Benjamin.  Fiquei intrigada com a seguinte frase:

… as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo.

Essa frase de Benjamin foi um grito em meus ouvidos, para reafirmar esse grito Giuliano disse algumas vezes no encontro que a experiência é a substância viva da vida, é aquilo que nos passa, algo marcante, que traz sentido para vida. Fiquei extasiada com essa afirmação e ao mesmo tempo triste por saber e sentir que elas estão sumindo. Estamos cada vez mais insensíveis, quase que cauterizados, nossa pele não sente mais as provocações da vida como os que viveram antes de nós sentiam, portanto, não temos mais tantas narrativas para contar.

A partir daquela aula nasceu em mim a necessidade de ouvir histórias, de procurar pedaços para me compor.  Dessa vontade surgiu a escrita que está no início deste texto, um trecho de uma das histórias de meu avô. Ele sempre contou sobre sua vida na humilde casa de sapê e da morte precoce de seu irmão mais velho, mas somente após a leitura de Benjamin passei a ver beleza nos relatos desse senhor de 88 anos.

As histórias de meu avô eram ricas, lotadas de experiências significativas, enquanto ele falava seus movimentos e expressão facial mudavam. A minha impressão era de que ele estava voltando para aquela antiga casa.

A história de Natálio permaneceu em minha mente por dias, enquanto ela estava lá guardada continuei minhas leituras e busca do meu gesto a partir da escrita de outros autores (Ramos do Ó nos encontros d’A Casa incentiva a eterna busca de escrita de si, mas é relato para outro dia), encontrei Habitantes de Babel e Vilela me atravessou, ela diz que dar sentido através dos nomes aos acontecimentos sem memória é não dizer o outro, mas erguer a voz do outro, é construir linguagens de resistência.

Acredito que cada vez que meu avô conta suas histórias, ele traz de volta a vida os moradores daquela casa, mesmo que por alguns instantes. Retira do esquecimento seus familiares que já partiram e coloca em mim algo novo, que a partir deste momento se faz meu.

E para reafirmar, A Casa é um lugar de encontros com meus gestos, a escrita, autores, a matilha. No entanto, aconteceu algo que eu nunca imaginaria, reencontrei meu avô e suas histórias, que agora também são minhas.

 

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