A busca pelo texto de Olavo em um livro qualquer

por Carolina Fedatto

 

 

Relato sobre o exercício de fazer um livro a partir da proposta de Camila Feltre para a Pós O livro para a infância em junho de 2021.

 

Fazer um livro já feito. Livro alterado. Per via di levare. A palavra no livro ilustrado. Qual livro? Olavo, de Odilon Moraes.

Fiquei procurando as palavras, ou melhor, as letras, às vezes as sílabas ou mais frequentemente apenas as sequências de letras do texto verbal de Olavo em um livro qualquer. Escolhi um livro retangular e azul, como Olavo. Era um livro de poesia, o que trazia particularidades: menos texto em cada página, provável repetição de palavras e letras por conta dos efeitos poéticos (rima, aliteração).

O texto dentro do texto. Mas todas as palavras de um livro estão no outro? Pergunta de criança. Surpresa. Sim. Basta procurar. Ansiedade – será que as encontro?

Busco primeiro a lápis, depois venho riscando com canetinha preta as letras que não formam o texto de Olavo.

Essa canetinha borra o verso da página. Preciso trocar o riscador.

Cuidado para não riscar a letra certa. Há letras raras: h, t, f, v, q. E os acentos? A pontuação?

Respeito a paginação do livro de Odilon? Não tem jeito… assim o livro qualquer acaba e não acho o texto todo de Olavo. Vou na sequência do acaso em que as letras precisam aparecer.

Às vezes relaxo e cubro logo de preto as longas palavras e frases que não contêm as letras que procuro. Alegria ao encontrar uma breve sequência: duas letras juntas, raramente uma palavra. Em momentos de afobação, risco uma letra que procurava. Mas logo vem outra igual.

Será que está legível? Como é possível ler esse texto? Aos solavancos? Como as crianças. Só é possível ler esse texto juntando letras, uma a uma, sem a inteireza visual das palavras.

Palavra desacostumada. Letra a letra. Outras escansões, não as silábicas, ortográficas.

O texto dentro do texto.

 

 

No processo de riscar e encontrar ou de encontrar e riscar também fiquei pensando sobre as decisões que a gente toma ao fazer algo, seja um trabalho como esse, seja uma pesquisa, uma escrita. Quando e como se decide por parar ou seguir? O que fazemos com os erros, os lapsos, os esquecimentos, o acaso?

Eu poderia ter me colocado uma regra fixa, do tipo: riscar sempre a primeira letra buscada da sequência do texto, e se porventura eu me distraísse e riscasse essa letra, teria que recomeçar o trabalho em outro livro. Eu poderia ter feito primeiro um rascunho a lápis e só depois riscar definitivamente à caneta. Mas fui deixando vários processos acontecerem, me permiti ser mais definitiva e lidar com o cansaço, com a flutuação da minha atenção, com o erro.

Frequentemente eu me distraía e riscava uma letra de que precisava. Uma, duas, três vezes. Seguia pensando que precisava me concentrar. Outras vezes, procurava tanto uma letra, estava tão obcecada em encontrá-la, que ela fugia de mim.

Quis respeitar a paginação do texto original, isto é, tentar encontrar o verso que estava em uma única página de Olavo em uma única página deste livro qualquer. Isso me fez ter que lidar muitas vezes com a frustração. Quase nunca consegui manter o texto na mesma página. Não porque a sequência de letras de Olavo não estivesse necessariamente naquela página do livro qualquer. Pode ser que estivesse… Mas eu tomava decisões que me faziam estender mais a busca em favor de uma melhor legibilidade. Enquanto riscava o livro qualquer, pensava o quanto aquele texto continuaria legível, para onde iria a compreensão? Preferia tentar encontrar ao menos uma sequência de letras da palavra, excluía letras em itálico, negrito ou maiúsculas, riscava sem querer um l muito fino, imaginava encontrar palavras inteiras… isso aconteceu muito pouco, com um que ou um não.

Muitas vezes minhas mãos doíam, sentia as costas, o pescoço tensos. Não queria perder o ritmo da busca, mas me distraía com os incômodos no corpo. Pensava sobre o ritmo no texto. O sintagma fragmentado de Olavo não era o mesmo no livro qualquer. No livro qualquer, não se trata nem mais de sintagma, mas de letras avulsas, catadas, esculpidas nos poemas já prontos. O ritmo do texto de Olavo no livro qualquer é entrecortado, requer o tempo da decifração, da busca, do ler de novo.

Procurar um texto já escrito em outro texto já escrito. Dizemos tanto com tão pouco. Dezenas de letras, infinitos textos. Esculpir um livro. Retirar as palavras que sobram. Procurar por elas. Como na vida.

 

 

 

 

 

Carolina P. Fedatto é doutora em Linguística pela Unicamp. Tem pós-doutorado em Estudos Linguísticos pela UFMG e pela UFF. É especialista em “O livro para a infância” pela Casa Tombada. É idealizadora da Cria Coletiva e faz parte da equipe editorial do Instituto Emília.

 

 

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