[Poemas à porta] La Paloma Presentes, por Carmen Capra

Definições sempre me encantaram. Não aquelas que se encerram nos dicionários, mas as que viram as palavras de ponta-cabeça, vasculham o seu passado para inventar outros futuros para elas.
La Paloma Presentes

por Carmen Capra

 

La Paloma Presentes

 

Às suas ordens? O que era? Pois não?

No primeiro contato, mais que uma disposição à freguesa.

Estão se usando. Na novela.

Pacotes bonitos, sortimento.

Tem desconto na circulação de valores nos balcões da loja?

 

 

Terezinha Maria Luiza, Inês, Liége, Etelvina, Ivone, Fátima, Rosa, Nilza, Mafalda, Lourdes faziam e vendiam, umas para as outras, guardanapos, toalhas, roupas de criança, toucas e mantas, luvas com e sem dedos, flores de tecido, bolsas, chinelos de pano, chapéus, xales.

Colchas.

Lencinhos bordados e babeiros de cambraia.

Ensinavam a conserva da cor, da brancura e da maciez.

Mas não os segredos dos começos, dos forros bem colocados e dos arremates. Aquele fio fininho, só os olhos na ponta da agulha da Rosalina atingiam. Imbatível, ela, nos jogos de 5 guardanapos para sala ou 3 para quarto.

Feitas para durar.

 

Mulheres tocando um estabelecimento comercial era concorrer um mundo de provas.

De saber vender e diminuir os estoques.

De saber o que vendia e sempre aumentar o sortimento.

Sustentar o negócio e a família, Luiza Terezinha Maria.

E atender ao balcão com o filho febril sentado no banquinho, escorado no vaso com as palmas de plástico.

E saber dos maridos à espera na calçada ou dentro do carro, apressando as mulheres negociantes de bonecas de pano.

E sobreviver à solidão depois da loja fechada e da janta feita, da louça lavada, da roupa recolhida, do feijão cozido, da porta trancada e da oração pelo dia de hoje e pelo de amanhã.

Sábado é dia de movimento.

 

Dia a dia de comércio se dá a ver pelas sortes: chaveiro de signo, baralho, álbum de figurinhas, dados e jogo de bingo.444

Galo do tempo.

Finos cinzeiros de pedras polidas ou ametista bruta de Guaporé.

Para a mesinha de centro.

O sapo amarrado na caixinha de papelão de bolas de natal, anonimamente posto atrás da porta do depósito.

A comigo-ninguém-pode, na porta da frente.

Seres mágicos.

Os anéis masculinos, dourados com rubis de vidro ou de acrílico, mais baratos. Mas estes saíam pouco.

Os tamanhos, suficientes para dedo grosso.

Anel pra homem nunca podia faltar e eles experimentavam meio que se rindo, enquanto equilibravam o cigarro no canto da boca. A menos que o tivessem escorado na beirada do balcão.

Quanto custa, vizinha? E pente, tem, aquele que cabe no bolso?

 

Na primeira prateleira do balcão, rente ao piso, caixas com mercadorias pequenas e em quantidade.

Uma para chaveiros, outra para pentes, a maior para bonequinhas bem pequenas de braços e pernas duras, uma lata com tampa para apitos variados.

Os espelhinhos ficavam enfileirados, justos, na caixa forrada com papel de embrulho. Verde.

Os ovais em uma fila, os redondos em outra.

De um lado, espelho, do outro, a mulher pelada, como os cartazes da oficina do Seu Raul, duas salas para lá.

Mulher pelada e bateria.

Mulher pelada e escapamento.

Óleo de motor.

Balcões de ofertas entre ataques e proteção.

 

Maria Luiza Terezinha de trás do balcão também compravam.

Laranjas, queijo, chimias, ovos.

Vassoura comprida para tirar teias no teto.

Das ciganas, panelas e lençóis.

E apostavam a sorte. O bicheiro carregava um radinho de pilha colado na orelha e passava na loja de manhã, com o bloquinho gordo e enrolado.

Qual é o palpite hoje, vizinha?

Sonho com cobra, que número é, mesmo? Pega lá o livro dos sonhos, na gaveta.

Joga na cabeça. E põe do primeiro ao quinto. O que será o sonho que tem leão com asas e uma águia-gato? Moeda, por exemplo, é zero porque é redonda, se cai e pica no chão é 10, duas vezes é 200.

Invertido também?

Para bilhetes de loteria, números bonitos e maiores.

Dá um pedaço desse aí, é a placa do corcel do José.

 

 

Os canários coloridos com ventosa eram a coisa mais difícil de arrumar e de empacotar.

Comprava 50 e 10 vinham quebrados, mas como vendia.

As bolas de acrílico com conchas para a marcha do carro, vendiam pouco.

Eram caras. Acabou e não se comprou mais.

Até que um dia, ninguém mais queria os canários de plástico.

Nem os colares de bolas, nem as pulseiras largas de acrílico.

Ficaram nas cartelas as presilhas de cabelo.

Sobraram sapatinhos de bebê, xale de batizado, conjuntos de cozinha, capas de botijão de gás.

Nem violãozinho de madeira e nem quartinho de boneca saíam mais.

Os transfers emborrachados de passar a ferro rodaram na roda dos valores.

 

A passagem dos anos se estendia nos calendários que sobravam. A filha mais nova ajudava na escolha das figuras.

Meninas com bichinhos no colo em 1979.

Cesta com frutas apetitosas em 1980.

O Papa João Paulo II em 1981.

Um cristo crucificado em 1982.

Bebês gordinhos e filhotes de gatos e cachorros em 1983. E aquela pintura conhecida do menino chorando, que diziam que virando de cabeça para baixo aparecia o diabo.

 

Maria Luiza, na La Paloma Presentes a pomba é mensageira. Terezinha Maria, a mulher da carta cinco de copas é santa, é morte, é violeira e bailarina com espingarda.

Para uma, valores e importâncias. Para outra, magias e sortes. E para aquela que une as duas pelo nome, simpatias, oferendas, salve, salve.

 

escute aqui La Paloma Presentes:

 

 

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La Paloma Presentes é um dos valores em circulação, uma série que veio como faíscas das Biografêmeas, uma proposição da Professora Sandra Lessa, no Curso de especialização Escrita como Gesto de Risco (2021-1).

O ensaio traz cenas de uma loja onde duas mulheres comerciantes convivem com mercadorias, artesãs, freguesia e uma sorte de valores em circulação. A rede de poderes e magias em jogo na vida daquelas mulheres é o que estava sendo tateado em texto e imagens.

Carmen Capra, abril de 2021.

 

 

 

 

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