por Marcelo Ariel
Em uma das entrevistas que compõe o filme ELEGIA DE MOSCOU de Aleksander Sokurov, Tarkovski diz se referindo ao efeito das obras de arte sobre as pessoas, preferir a iluminação ética ao contágio. A ética é ato em si considerado em suas irradiações, em seus círculos na água. O que ele ousa é reivindicar para a arte a possibilidade de iluminar nossos gestos cotidianos, nisso ele ecoa Tolstói mas sem a rigidez mística demostrada no famoso ensaio O QUE É A ARTE? Eles são como primos que falam dialetos diferentes. Tarkovski desejou retirar a arte deste lugar tão comum hoje, onde ela corre o risco de ser apenas um adereço ou arabesco com efeitos catárticos capazes de diluir nossa vida interior em névoas algorítmicas, seu cinema é a recusa desta manipulação sutil da catarse e o deslocamento da imagem para outra temporalidade. É fácil compreender que a Zona em STALKER atua como a natureza não como uma metáfora da natureza. Os filmes de Tarkovski trabalham com a ideia da topologia como um campo de metamorfoses, cada um de seus filmes é a proposição de uma metamorfose ética transcendental que implica em uma mudança no modo como o contemplamos, trata-se mais de contemplação da duração da imagens do que o simples e automático ato de assistir a um filme. Ele deseja que nos desloquemos até esta zona de metamorfoses éticas transcendentais e mesmo após contemplarmos seus filmes nós não sabemos como. Não sabemos racionalmente. É uma sabedoria óbvia, a arte deveria ser um meio de transporte para a Zona de Stalker. As bases de sua estética envolvem a transformação do cinema em parte espiritual da natureza, esta é a questão principal para ele. O filme é um elemento de preparação para o transe da contemplação que nos colocaria em algum lugar fora do tempo, na duração, como num encontro estético-ético entre Bergman e Bergson, o filme nos prepararia para novas texturas temporais que se vinculam ao pensamento silencioso das coisas, algo muito próximo da poesia que existe em tensão permanente com a palavra, um halo que envolve as imagens do mundo e infelizmente é visível para poucos. Tornar este halo visível era o grande desejo de Tarkovski.
Há um verso inicial no poema PATMOS de Holderlin que parece sintetizar a visão do sagrado em Tarkovski:
“Dá, pois, sem
Culpa, água,
Oh, dá-nos asas
De fidelíssimo
Sentido.
Para transpor e
para retornar”
(Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho)
No ideário fílmico tarkovskiano, busca-se essa ética da água, como a base para uma metamorfose ética transcendental que reside em uma metafísica da natureza onde se cruzam Antonioni e Espinosa, como se para Andrei Tarkovski a vida fosse em seu grau maior, iluminada por uma po-ética da qual a arte é apenas uma das asas.
Marcelo Ariel é poeta e vive em São Paulo