por Edith Derdyk
Difícil citar apenas um livro do ensaísta francês Paul Valéry (1871-1945) sem pensar em todo o percurso de sua obra como uma edificação sideral, uma composição sináptica de sentidos. Considerando o tempo de uma vida inteira dedicada ao cultivo das palavras, como se estas fossem as estrelas de um céu, tais pontos brilhantes nos convoca, imediatamente, ao jogo do ‘ligue os pontos”, surgindo daí figuras e nomes em nosso mirante constelar.
Somos convocados à experiência de uma leitura que nos inscreve em uma espécie de paisagem aérea – uma espécie de vagar em estado de devaneio, suspenso. Ao ler, vamos tropeçando nos encadeamentos das palavras, nas rasuras de um pensamento sobre o pensamento de sua própria construção. Não se tratam de metáforas e nem de um texto tecido especularmente sobre si mesmo – pelo contrário, a linha do pensamento vai gerando tentáculos, teias e sinapses constelares que movem o pensamento em direção à natureza do ensaio como um grande desenho se fazendo. Seus ensaios, poeticamente filosóficos ou filosoficamente poéticos, não saberia afirmar, versam sobre os enigmas da linguagem em construção, infinda, inaugurando-se a todo instante. Ao ler, palavra por palavra, ensaiamos os passos do pensamento em ondas, neste constante vai e vem. E assim dançamos pensamentos, cúmplices de uma coreografia que vai se entretecendo no gerúndio das fibras das palavras em rotação. Deste fundo sideral, emerge a estrela Degas, Dança, Desenho (1).
Ora, a Dança engendra toda uma plasticidade : o prazer de dançar libera em torno de si o prazer de ver dançar. Os mesmos membros compondo, decompondo e recompondo suas figuras, os movimentos se respondendo em intervalos iguais ou harmônicos, tudo isso forma um ornamento da duração, como a repetição de motivos no espaço, ou também de suas simetrias , forma-se o ornamento da extensão.
Paul Valéry, seguindo a linhagem de Leonardo da Vinci, este artista da Renascença que modulou os distintos campos de conhecimento através de seu traço, desenhando os saberes oriundos da observação profunda sobre os modos operativos do mundo como um corpo orgânico, sistêmico e fractal, lhe dedica o livro “Introdução ao Método de Leonardo da Vinci”(2).
O ar está repleto de infinitas linhas retas e radiosas, entrecruzadas e tecidas sem que uma nunca se sirva do percurso de uma outra, e elas representam para cada objeto a verdadeira forma de sua razão.
Valéry se vale da observação da engenharia cósmica do mundo, exercida por Leonardo da Vinci, aproximando o sabor integral de muitos saberes e , de certo modo, incorpora estas ‘Variedades” (3) no agenciamento da escrita: é um filósofo que escreve como um poeta, um poeta que observa como um cientista, um ensaísta que pratica travessias e costura um campo de relações expandidas, tal qual o método de pensamento de Leonardo da Vinci que Valéry pesquisa.
O sonho fica aquém da vontade, e nada obtém pela vontade a partir da fronteira do sonho. Toas as facilidades, todos os impedimentos mudam de lugar\; as portas são muradas, e os muros são de gaze. Há nomes conhecidos em pessoas desconhecidas. É absurdo andar com as mãos, mas se não tivermos mais pernas e precisarmos nos deslocar, não haverá outro jeito.
Daí este livro convoca a empatia com outro livro – A Serpente e o Pensar (4), na versão brasileira com apresentação de Augusto de Campos, que explicita a fricção ‘do som e do sentido’ dada a aproximação entre as duas palavras que, em francês, tem conexões sonoras e anagramáticas – serpent _ penser – anunciando a natureza ouroboros do pensamento , desta lógica imaginativa que faz e se refaz o tempo todo, inspirando a natureza do pensamento ser serpenteante, fluxo espiral inacabado.
Eu mordo o que posso.
Não saberia destacar somente um livro de sua obra constelar, cujas pequenas variações abrem fendas abismais por onde a luz atravessa entre as palavras , dando relevo à tessitura de seu texto que desenha esboços nascentes do pensamento. Não saberia recortar uma fonte de ‘sons e sentidos’ que brotam a cada palavra que lavra e revolve este tipo de cultivo – arar, rotacionar, espiralar.
Paul Valéry divaga o tempo todo, devagar. Na mira, a sua habilidade em nos conduzir em seus devaneios sinuosos por um lado, tornando o leitor um caminhante à deriva, e por outro lado, com uma precisão cirúrgica quanto à marcenaria do texto que sustenta cada passo que ancora firme neste território movente entre a natureza da vida e a natureza da linguagem. Erramos com precisão.
Por entre tantos ritmos, intensidades e variações em torno de núcleos que friccionam as conexões desmedidas entre ‘as arbitrariedades e as convenções’ da linguagem, nos remetendo à presença de um corpo que sente, percebe, pensa, age, produz, gera, reproduz, constrói, fabrica cápsulas poéticas em torno, a partir e na aventura do pensar, o livro Variedades, cuja convivência vem vindo desde século passado quando caiu em minhas mãos a edição que carrego até hoje, vinca o seu passo aqui, neste pedaço de espaço.
O livro Variedades coleta pequenos ensaios de toda ordem – literatura, política, poética, estética – um belo convite de entrada à constelação prismática de sentidos que Valéry nos lança e nos joga, como cúmplices.
Ler Paul Valéry ecoa, em mim, uma forma de desenhar caminhos sinápticos, delineando rastros e campos de ressonâncias.
Numa certa idade, acabamos olhando a vida como a vida de um outro. Consideramos o desenho que ela forma no passado como um dos desenhos possíveis que poderiam ter sido traçados pelo mesmo indivíduo.
- Valéry,Paul. Degas, Dança, Desenho. Cosac&Naify. 2003.SP.
- Valéry, Paul. Introdução ao Método de Leonardo da Vinci. Editora 34. SP. 2006
- Valéry, Paul. Variedades. Editora Iluminuras.SP.1991 ou
- Campos, Augusto de. A serpente e o pensar. Editora braisliense.1984
- Trecho da conferência proferida em Bruxelas 1942, SouvenirsPpoétiques. Aguinaldo Gonçalves – O alquimista do espírito.pg 223 in Variedades.Ed.Iluminuras