por Ellen Paes
Em janeiro, mês das minhas férias, eu resolvi sair da minha zona de conforto e decidi pegar “um livro qualquer” pra ler. Moro no Rio e fui à Natal visitar minha mãe depois de um ano sem a ver, devido à pandemia. Obviamente, naquele esquema total de segurança, sem encontrar ninguém, ficamos apenas eu, minha namorada e minha família. Neste momento totalmente atípico do ponto de vista sanitário e histórico pro país, encontrei em meio às coisas do meu irmão, o livro Aimée&Jaguar.
O livro conta a história de duas mulheres de universos diferentes (uma lésbica convicta judia e uma – até então – hétero esposa de nazista, que se descobre lésbica depois). Elas se apaixonam em plena guerra e holocausto, em 1944.
Quando falo que saí da minha zona de conforto não quer dizer que os livros que vinha lendo sejam confortáveis, ao contrário. Mas é porque quase todos vinham sendo dentro da temática racial. Fui surpreendida com esse livro que não era meu e acabei sugada pela história dele nestes dias de férias. Não que falar de nazismo não seja também uma questão racial, mas, o livro não é apenas sobre isso. O livro é sobre o amor em tempos de ódio. E isso realmente me tocou neste momento nosso, que era também um recorte de amor nos tempos mais difíceis que atravessamos.
É um livro sobre coragem de amar, porém triste. E eu fiquei me perguntando por que inventei de ler ele em plenas férias, em que só queria ver o bonito da vida depois de um ano difícil pra todos. Queria uma pausa.
Mas como sabemos, não existe só o bonito da vida. E acho que foi incrível ter lido ele justamente neste período. Pra entender que o caos e a beleza coexistem. Resguardadas as proporções de tempo, espaço, classe e raça, me senti vivendo a beleza e o caos. Por que não?
Não existe lado bom em uma guerra. Nem em uma pandemia que acontece em plena crise política, desatando um genocídio, um novo tipo de holocausto. São histórias que poderiam ser totalmente evitadas pelo ser humano. É vergonhoso, triste e caótico. Não tem lado bom.
Mas acontecem coisas boas microcosmicamente e essas coisas coexistem e também precisam ser vividas e faladas pra que a gente não perca a esperança em sobreviver, não perca a capacidade de sorrir, pra que a gente não ache que está tudo perdido, afinal. Com consciência e responsabilidade, obviamente.
O livro mostra exatamente isso. Como a vida continua acontecendo apesar de nossas misérias, de nossas guerras e apesar do mal.
Elas se apaixonaram no pior momento. O mal crescia sem que muitos percebessem. De tal modo que muitos foram convencidos de que o mal era o certo a ser feito. E muitos endossaram esse mal, que foi cavado assim, primeiro sutilmente, até se tornar a aniquilação de uma população.
O fascismo também se atualiza. Também vivemos em uma guerra e o vírus não é o principal vilão. Ainda viveremos restrições por muito tempo. E vamos precisar de ferramentas pra suportá-las.
No livro, em meio à guerra, Aimée vivia sua primeira e única relação com uma mulher. E em 1944 (!) quando sabemos que apesar de existir, a questão LGBTQIA+ nem tinha a expressão como tem hoje.
Eu, como Aimée, também estou vivendo minha primeira história de amor com uma mulher, nesta guerra.
Tem pessoas que me perguntam como aconteceu uma relação com outra mulher em meio a uma pandemia, a tanta tristeza, a tanta banalidade do mal. Eu não sei direito também. Talvez fosse isso, a insistência em garantir uma parte boa pra continuar sentindo vontade de seguir, apesar de tudo.
As coisas acontecem e coexistem. Coisas ruins e boas acontecem simultaneamente na história coletiva e nas vidas individuais. E não significa que quem esteja vivendo o que lhe foi apresentado individualmente esteja deslocado da realidade (tem gente que sim, tem gente que não).
Jaguar (Felice) era uma judia comunista que vivia na clandestinidade. Uma jornalista que sabia muito bem da realidade. E simultaneamente às fugas dos nazistas, viveu seu romance com Aimée (Lilly). Por que não?
Algo que me tocou especialmente foram as fotos delas, de um dia leve às margens do Rio Havel. Elas duas tiveram um dia lindo à beira de um rio (sim, em meio à guerra), se beijaram, se fotografaram, registraram esse amor, simularam um casamento. Quanta coisa elas fizeram em um dia, enquanto a humanidade vivia uma das partes mais tristes de sua história!
Felice foi presa no mesmo dia. E isso não se vê nas fotos. Porque como também se sabe, os registros fotográficos são pequenas realidades de um segundo.
Mas que bom que elas registraram seus sorrisos, suas felicidades momentâneas, suas histórias, suas pausas, seus respiros, seu rápido escapismo.
E Lilly viveu alimentada por essa curta e intensa lembrança para o resto de sua longa vida.
E é sobre isso também. Sobre viver. Sobreviver.
Livro: Aimée & Jaguar
Escritora: Erica Fischer
Editora: Record
Ellen Paes é jornalista, apresentadora, diretora e roteirista de Audiovisual. Atualmente é editora-chefe do jornal Em Pauta na Saúde do Canal Saúde/Fiocruz. Em 2017 lançou o documentário #EuVocêTodasNós , onde figura como personagem central e diretora de conteúdo. O filme foi indicado como finalista do New York Festivals World’s Best TV & Films 2018 na categoria documentário Social Issues. Também, em 2018, participou da websérie “Querendo Assunto”, um programa do Youtube protagonizado por apresentadoras negras.