por Liliana Pardini
Ele me olha há anos.
Na casa da minha infância, meus pais abrigavam uma pequena livraria na estante em frente à mesa de jantar. Ao invés de todos os livros se enfileirarem mostrando apenas a lombada, como numa biblioteca particular, alguns se exibiam de frente. Entre eles, Zaratustra.
A cada refeição eu lia seu nome exótico. Um dia perguntei: posso ler esse livro? “Ah, ele é um tanto difícil para você.” Cresci com isso.
Quando vim para a minha casa de agora, juntando trapos e livros, Zaratustra chegou com a bagagem do meu marido. Um misterioso velho conhecido.
À medida em que minha curiosidade crescia, ele começou a aparecer em referências de outros autores, e eu o trouxe para mais perto de mim, para quanto “tivesse tempo”.
E o tempo chegou. Mas será que eu estava pronta para o encontro? Na capa o aviso: um livro para todos e para ninguém. Tomei por convite.
A edição de 1989, com manchas na lateral das páginas, me seduziu pelo cheiro.
Já Zaratustra foi mais rascante. Bateu no meu peito e gritou: “O que é você? O que você quer? O que vai fazer com a sua vida?”
Quem conversou comigo enquanto vivi essa leitura me ouviu dizer: ele me provoca o tempo todo!
Diz frases que tenho vontade de tatuar, como: “É preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante”.
Outras me fizeram xingar: “E porque sabemos tão pouco, apreciamos, de todo coração, os pobres de espírito, especialmente se são mulheres jovens.”
E que põe de pernas para o ar: “E guarda-te dos bons e dos justos! Eles gostam de crucificar os que inventam a sua própria virtude” e “Tudo aquilo que os bons chamam mau deve unir-se para que nasça uma verdade. Sois suficiente maus para esta verdade?”
Nos reconciliamos em outras: “Criar — essa é a grande redenção do sofrimento, é o que torna a vida mais leve.”
E me deixa em dúvida: “Todos os criadores são duros.”
Me mostrou o valor do egoísmo e a como conversar com o próprio coração.
Seguindo sua fala: “Retribui-se mal um mestre quando se permanece sempre e somente discípulo”, obedeço desobedecendo e aprendendo a obedecer a mim mesma.
Alegrias, raivas, dúvidas, conflitos, inspirações. Ler Zaratustra é uma relação e tanto. Para todos e para ninguém.
Nietzsche, Friedrich W. — Assim Falou Zaratustra, 1989, 6ª edição, Bertrand Brasil.