por Gabriel Biasetto
Fazia muito tempo que eu não lia algo tão lindo, tão visceral, tão espetacularmente gigantesco como a narrativa confessional e libertária de Maya Angelou; é que, embora a ficção seja “o meu lugar no mundo”, a pandemia me fez sentir uma certa necessidade quanto ao consumo incessante de obras biográficas e autobiográficas. E, como sou apaixonado pela tecnologia humana, saber de alguém pela voz própria desse alguém me fascina, pois ali estão contidos todos os sonhos, os desejos e as fantasias de quem narra a própria vida e de quem tem a coragem de se despir como fez Angelou em Mamãe & eu & mamãe (Ed. Rosa dos Tempos, 176 páginas).
Li esse livro pela primeira vez no início da pandemia, chorei copiosamente. É que aqui, Maya nos conta sobre a criação esquisita com a avó; deixada muito cedo, pela mãe, para viver longe dela, a jovem escritora e poeta volta para o convívio materno alguns anos mais tarde, após a infância, e descobre na mãe uma personagem que não só lhe traz a inspiração para que ela seja forte e disciplinada na coragem, mas também como a figura que equilibra, com boas doses de amor, humor e aspereza, o mal estar e o bem estar quanto a estarmos vivos e termos de encarar as adversidades desse mundo. Não bastasse a vida ser difícil, para Maya Angelou, negra, fica evidente a presença do racismo durante toda a sua trajetória, preconceito que, ao lado da mãe e dos irmãos, Maya encara utilizando a inteligência e, acima de tudo: o amor.
O amor cura. Cura e liberta. Eu uso a palavra amor não como sentimentalismo, mas como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias.
Maya passa a conhecer, de fato, a mãe que tem, tardiamente. Uma vez que grande parte de sua infância tenha sido experienciada ao lado da avó. Mas, não só um livro que comenta os aspectos da maternidade na vida de uma mulher (sob o ponto de vista de quem é filha), Angelou também fala do amor e carinho que sentia pela avó – é um livro sobre a convivência de mulheres fortes, fortes por natureza, agarradas ao desejo de permanecer e se defender de qualquer pessoa ou coisa que possa se colocar em seus caminhos.
O amor das duas me instruiu, educou e libertou. Morei com a minha avó paterna dos três aos treze anos de idade. Minha avó nunca me deu um beijo durante todos esses anos. Porém, sempre que havia visitas, ela me intimava a ficar na frente delas. Daí afagava meus braços e perguntava: “Já viram braços mais lindos, retos como uma tábua e morenos como manteiga de amendoim?”
Maya Angelou, em seu romance autobiográfico, trata de um tema central, que pode parecer superficial no início da leitura, mas que vai ganhando contornos cada vez mais fortes à medida que a narrativa se estende: a autoestima. Autoestima sendo uma mulher negra em um país (mundo) racista; autoestima sendo criada por mulheres que souberam demonstrar a sua forma de amar através da educação pela coragem. Autoestima na coragem, disciplina na coragem, coragem para que se possa ter coragem. É um livro sobre mulheres, coragem, disciplina e amor – é um livro sobre a filha Maya Angelou, que aqui demonstra, também, as suas fraquezas, os momentos em que sentiu medo ou em que se viu desamparada. Eis a beleza da realidade da vida: não existe a tal facilidade de se viver, não para todos. Mas, existe a arte, o amor e a certeza de que, na maior parte do tempo, o que nos salva são as nossas raízes e o nosso desejo pela permanência.
Gabriel Biasetto nasceu em Bragança Paulista (SP); é formado em Letras e pós-
graduado em Literatura Inglesa. Professor de Inglês e Língua Portuguesa, publicou,
em 2021, o romance Quando ainda era verão (Editora Patuá).