Livros livres: acesse, copie, adultere, distribua

 

 

por Maruzia Dultra

 

 

Na contramão das regras do mercado editorial, a “Coleção (no prelo)” é movida por um lema que escapa à lógica da propriedade intelectual. Por isso, seus dois livros recém-lançados – Cartas (não) filosóficas e Ensaio Corpográfico – são free-ebooks não apenas pela gratuidade do download, mas também por serem livros livres, que podem ser acessados, copiados, adulterados e distribuídos, sem a necessidade de permissão prévia, nem citação da fonte. A única exigência é de que as obras derivadas mantenham o mesmo tipo de licença de uso e reprodução. Portanto, assino essas duas obras, sem, contudo, intencionar que elas se restrinjam aos limites impostos pelos direitos autorais, que, por vezes, nem mesmo as flexibilizações do copyleft conseguem superar.

Criei a coleção em 2018, já na reta final do doutorado, a fim de promover o encontro que sustenta o insustentável gesto da escrita com você, pessoa leitora. Os títulos, editados em tiragem mínima (quando artesanais) ou máxima (quando virtuais),  variam da forma impressa, manuscrita, digital, até “livros quase-de-artista”, como costumo chamar, e quase sempre partem de caderninhos de papel para ganhar nova vida na página e/ou na tela. A vontade de inventar essa coleção veio quando me deparei com a abertura ao público dos cadernos e demais artesanias que havia criado no processo de feitura da tese. Reuni tudo na expografia COMTATO, que teve uma aparição-relâmpago entre as pessoas presentes no dia da banca de defesa. O intuito era ser um convite ao tato delas, ao toque na matéria poética que havia estado confinada no estúdio durante todos aqueles anos. O nome “(no prelo)” é uma referência crítica ao limbo em que muitas obras finalizadas permanecem, sem nunca virem a público por motivos variados. Há, nele, também certa ironia e ludicidade, já que expressaria um trabalho ainda não publicado, mas, no caso da coleção, significa a chancela de um selo de autopublicação, que acolhe meus trabalhos e os torna publicizados.

Quando penso e proponho uma tal poética da adulteração, faço isso desde um exercício de escrita que venho praticando há alguns anos, dentro e fora da academia, ainda que esta nos conduza a creditar os teóricos que citamos, direta ou indiretamente. Ao dizer isso, não faço apologia ao plágio acadêmico, mas considero que há, em muitos casos, uma necessidade antropofágica de devorar os pensamentos que nos atraem intelectualmente, fazendo deles nossos também, seja pela cópia recontextualizada, seja por uma adulteração mais profunda – pois existem muitos níveis nessa poética, que pode se fazer presente até mesmo através do simples deslocamento de um ponto. Porém, nem copiar nem adulterar significam mimetizar, se passar por disfarçadamente. Quem copia quer se fazer reconhecidamente igual, quem adultera se faz marcadamente diferente; já quem mimetiza uma alteração falsifica às avessas: finge ser diferente, mas não deixa de parecer com o referente, sem, no entanto, assumir tal semelhança.

Diante desse jogo de espelhamentos e adulterações, eu diria que o livro Cartas (não) filosóficas traz “ensaios poéticos” que flertam com a filosofia. São poemas, miniprosas e cartas endereçadas ao professor e filósofo Peter Pál Pelbart, incluindo uma carta-posfácio dele, além de três vídeo-cartas que também o têm como interlocutor-destinatário. Todo esse material foi sendo enviado a ele, via correio, entre 2013 e 2018, e agora entrego esses envelopes para você.

“Ao longo desses anos, recebi seus presentes como o (a)guarda-carta, ou a pequena lousa, ou outros tantos, e não entendia bem do que se tratava, mas criavam um curto-circuito no meu cotidiano – e só ao ler sua tese entendi que eles já eram parte dessa pesquisa que incluía esse exercício de pombo-correio.”

[Peter Pál Pelbart, em carta-posfácio de Cartas (não) filosóficas]

No percurso de produção dessas escritas variadas, acessei e adulterei obras diversificadas para discutir filosófica e literariamente o conceito “corpoimagem”, que propus na minha tese de doutorado como sendo a pele da palavra poética. Ou seja, o corpoimagem é a camada múltipla de imagens que se formam a partir da palavra em contexto poético, que não é necessariamente um poema, mas sim qualquer texto que nos põe em risco de sermos afetados por ele. Portanto, há uma implicação de nossa pele também, porque não lemos apenas com os olhos, lemos com o corpo inteiro. E é a pele que o contorna, delimitando-o.

Quase sem querer, descubro que é invivível viver sem você. Como conviver com esta ausência espectral e sobreviver a ela? Incorro em zonas limítrofes de tal condição, nas quais posso te encontrar, te encontro. A ressoar a perplexidade de Espinosa, quantas…

[“carta cinco”]

É nesse sentido que, por outro lado, arrisco dizer que o livro Ensaio corpográfico: processo de pesquisa entre arte, ciência e filosofia é composto por “poemas (não) filosóficos”. Bilíngue (português/francês), a obra reúne imagens fotovideográficas de peles (frames retirados de vídeos), junto a uma fábula, um poema e um diário de pesquisa, no qual conto sobre o processo criativo da “Dermoteca”. O formato diarístico revela a natureza processual do livro, além de forjar uma intimidade que venho executando enquanto método no trajeto de artista-pesquisadora.

 

Sob a distância ínfima de seus dedos,

descubro uma construção no exato momento de seu erguimento.

O toque engendra um corpo no corpo,

que se faz, desfaz e refaz.

Com o corpo do outro, chovo.

Amo, morro.

Pele contra pele.

Pele com pele,

em fricções que fazem do olho ficção

de um devir imaginado, vivido, desejado,

quase cintilação – uma aparição.

 

Do ponto de vista teórico-crítico, a partir das noções de “corpo utópico” e “heterotopias” propostas por Michel Foucault, elaboro uma definição para o “corpo heterotópico”, unindo as duas pontas que o autor havia deixado soltas em suas conferências radiofônicas de 1966. O livro inclui, ainda, carta-posfácio do filósofo japonês Kuniichi Uno e uma vídeo-carta, mais esta destinada a Peter.

“Essas imagens da pele revelam-me imediatamente a imagem como pele, uma matéria singular da vida. Hesitamos entre olhar e sentir, não vemos senão grãos e poros, tecido e linhas, fragilidade e vibração, ferida e penugem, grito e murmúrio, e sobretudo o silêncio que as atravessa.”

[Kuniichi Uno, em carta-posfácio de Ensaio Corpográfico]

É certo que ambos os livros tomaram corpo no doutorado, mas eles são frutos de, pelo menos, dez anos de pesquisa, anos em que caminhei como uma errante entre as áreas do conhecimento, interessada nos estudos do corpo, na escrita e na imagem, tendo como suporte de criação o vídeo e o livro. E eis que essas trilhas confluíram nas duas obras: literatura, comunicação, medicina, artes visuais, difusão… Peter tinha mil vezes razão quando me disse, certa vez, que o entendimento da pesquisa é algo retrospectivo. Eu não imaginava o quanto, mas, desde lá, confiei. Agora, vejo os sentidos e conexões quase magicamente pululando e, neles, está também o motivo do lançamento duplo: essas são obras suplementares, que se emaranham, que partem de um mesmo corpo que escreve, mas diferem em corpo de escrita, que precisaram de tempo(s) para chegarem ao mundo, como soube Joaquim Viana Neto, orientador da tese, auscultar e aguardar os porvires dessa coleção.

“A pesquisa, portanto, faz-se enquanto artesania da(s) própria(s) vida(s) que segue(m) seus encontros entre cartas e vídeo-cartas (não) filosóficas, entre qualificações e recusas, entre defesas e escutas, entre criações fortuitas e outras duradouras, entre a imagem que cabe e aquela incabível, entre a borra da imagem e a tese que se consuma, entre o consumo da imagem da tese e a formação dos seus duplos, entre os tempos de feitura e a sua espera, entre a espera do tempo e o seu adormecimento, entre o parecer e o (des)aparecer da vida que se tese.”

[Joaquim Viana Neto, “postada depois da hora” em Cartas (não) filosóficas]

 

Livros:

Cartas (não) filosóficas

Ensaio Corpográfico: processo de pesquisa entre arte, ciência e filosofia/Essai Corpsgraphique : processus de recherche entre I’art, la science et al philosophie

[Maruzia Dultra | Edição da Autora | Salvador, 2021]

 

 

Link para download: https://www.livrideo.online/br/colecao-no-prelo

BooktrailerEnsaio Corpográfico”: https://youtu.be/SE2bc8DM3q4

BooktrailerCartas (não) filosóficas”: https://youtu.be/jcrlo8Lcc4o

 

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Maruzia Dultra é jornalista e artista-pesquisadora com pós-doutorado em Literatura e Cultura pelo Instituto de Letras da UFBA, no qual realizou pesquisa teórico-prática sobre Literatura expandida. É mestra em Artes Visuais pela ECA/USP e doutora em Difusão do Conhecimento pelo DMMDC/UFBA. Integra o Grupo de Pesquisa Imagens do Pensamento: Criação, Crítica, Teoria (ILUFBA/CNPq) e atua no LABOR.POET.CO (Laboratório Crítico-Criativo de Poéticas Contemporâneas), onde realiza criações multilinguagem que exploram a imagem e a escrita, experimentando formatos que partem das Artes do Vídeo e do Livro, e se abrem a escrituras expandidas. Contato: maruziadultra@gmail.com