Letícia Moreno
Na arte sumi-ê, técnica de pintura asiática originada na China e difundida no Japão através de conceitos zen-budistas, é uma modalidade artística que dá atenção a técnica de pintura aguada com tinta preta. No sumi-ê, o espaço vazio é considerado parte da composição como elemento, não como ausência ou falta. O vazio compõe uma materialidade, contempla a narrativa e pode ser o fator mais importante da peça se for um cenário de natureza que inclua montanhas, florestas, ou imagens do céu – ao contrário de um direcionamento imagético ocidental, o vazio aqui, possui grande importância imagética.
O livro Vazio da autora e ilustradora portuguesa Catarina Sobral chama atenção pela sua capa, a princípio. O ditado costuma dizer para não julgar um livro por sua capa, mas neste caso, não há escapatória. A capa traz consigo uma mistura de cores e texturas – não se sabe muito bem em qual mídia e suporte essa imagem foi composta, há vestígios de pinceladas, um pouco de textura de carimbo e um rabisco do que parece ser um grafite no canto superior esquerdo. Tudo isso junto de uma grande silhueta branca, do que parece ser um homem vestindo um chapéu.
Ao abrir o livro, encontramos uma padronagem em formato de losango nas primeiras guardas e logo um estado caótico nas páginas seguintes. Catarina tem um trabalho que podemos denominar multimídia, pois a ilustradora se interessa pelos diálogos resultantes entre diferentes suportes e materiais podem proporcionar, e nas páginas iniciais, ao apresentar o personagem, ela se aproveita dessa mistura, com um fundo escuro e pouquíssimos elementos em branco – tal qual o personagem na capa, para dar atenção a ele, na janelinha de sua casa. Está ali, aquela silhueta branca, junto de um caos com ruídos e texturas.
Ao passarmos para próxima página, percebemos nosso querido colega-silhueta construindo a própria imagem no espelho, querendo se portar para o que vai encontrar mais a frente, como se estivesse se arrumando para seguir mais um dia, e por aí em diante vemos que, apesar de se arrumar dentro da própria rotina, o personagem não se sente pleno, se sente vazio. Entretanto, ao contrário do que se pode imaginar, seu corpo quase invisível não significa falta de materialidade. Ele está lá, ele existe, está a fazer suas tarefas corriqueiras, como ir ao mercado, ir trabalhar, pegar transporte público se necessário.
Sua existência entra em conflito consigo mesmo, em meio às outras pessoas que possuem junto a sua base igualmente branca, cores e texturas que comprovam a sua materialidade, o que reconecta com a cena que vemos logo no início do livro, na qual o personagem está se arrumando para sua rotina ao desenhar sobre seu corpo olhos, chapéu, e os botões da roupa que veste. Concebe-se que as pessoas no seu entorno percebem sua existência, mas não de forma grandiosa, o personagem é apenas mais uma pessoa que ali está existindo como qualquer outro. Porém, apesar de seu corpo ocupar um espaço, ele se sente ausente.
Indo de contraponto a concepção do vazio dentro da pintura asiática sumi-ê que foi introduzida a vocês no início desta conversa, o nosso personagem – ao mesmo tempo que ocupa um espaço, dá destaque a sua materialidade. O fato de ser uma silhueta em branco ao longo das passagens de página faz sua presença evocar um vazio que não é em si material, mas sentimental. Desta forma, o que se opõe a mistura de texturas que a produção imagética de Catarina possua ao longo das páginas, o vazio do personagem não apenas é um contraste com os elementos ruidosos e texturizados, mas também um espaço silencioso que provoca ao leitor sensibilidade para buscar compreender as nuances que o vazio pode proporcionar. Assim, o que é este vazio? É presença? Ausência? Desimportância? Não-existência?
Por ser um massa branca em meio a tantos elementos, o personagem vai se afetando e tomando para si o que está ao seu redor ao longo do livro. Há um momento específico que a silhueta branca passeia por um museu e dentro de si é perceptível que tomou algumas características do que estava vendo, como uma demonstração de que estava a processar o que estava a ver. Há um momento que passa pelo mercado e também guarda para si as compras que estava fazendo, dentro do espaço da silhueta. A rotina acontece e segue, porém, a silhueta também comunica através de sua linguagem corporal, inclinada mais para frente com a cabeça baixa que ainda existe tristeza. Não importa o quanto as coisas o afetem, o personagem ainda se sente facilmente apático.
É quando Catarina nos surpreende introduzindo uma outra silhueta branca, vazia. Aparentemente uma personagem com trejeitos femininos. Ela também é “vazia”, mas no momento que os personagens brancos se cruzam, há uma conexão instantânea entre eles, como se fosse um momento do destino, uma forma que lembra a de um coração partido se completa quando esses personagens passam um pelo outro ao caminharem. A personagem que agora foi introduzida estava a caminhar enquanto lia um livro e ao passar pelo nosso colega protagonista, ela para em meio ao seu caminho, segurando o livro com o braço estendido, como em um sinal de surpresa.
Em meio a distração do seu vazio sentimental cotidiano, o protagonista não percebe que foi afetado e havia igualmente afetado outra pessoa ao longo da sua rotina e quando ele nota o livro chega ao fim. Os dois personagens “vazios” com um vermelho na altura do peito, um coração que toma cor e traz algo a mais em suas silhuetas. De forma sagaz, as últimas guardas trazem a forma de coração apresentada pelo encontro sobreposto dos personagens. Metades de um coração criando um só.
Vazio é um livro que brinca com sobreposições de texturas e interferências do espaço em branco com uma composição em sua totalidade colorida, se formos pensar num direcionamento estético-formal, mas também é um caminho para pensar em como um indivíduo possa se sentir como uma grande massa ausente de cor em um mundo tão colorido. Podemos interpretar a caminhada rotineira do colega-silhueta como se esse fosse mais do comum – nada o afeta emocionalmente, está perdido em seus próprios pensamentos e na imensidão de sua solitude até encontrar alguém, por acaso, no meio de sua rotina. O livro nos surpreende ao mostrar que podemos nos permitir ser tocados pelo o que nos rodeia. E que alguém pode estar sentindo a mesma exata coisa que nós mesmos.
Letícia Moreno (abril de 1993) é natural de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. É ilustradora, quadrinista e bacharel em História da Arte pela EBA/UFRJ. Seu trabalho protagoniza personagens negres, recusando estereótipos ao apresentar subjetividade e delicadeza em suas ilustrações. Gosta de explorar narrativa visual através da produção de zines, quadrinhos e usando bastante cores e texturas nas suas experimentações.