por Helô Beraldo (@baleialivros)
Há três semanas busco uma maneira de falar sobre uma companhia literária constante que tive em 2020. Quero muito falar sobre ela, mas mal a conheço e certamente vou passar minha vida a conhecê-la. Ela misturou vida e obra na mesma panela; leituras e releituras de gestos, sentimentos, sons, palavras, memórias. Teve uma vida de assombros, de descobertas, de sobressaltos de experiências, de “não sei”. Enxergou riqueza na pequeneza das coisas do cotidiano e na História.
Esta seção do blog chama-se [Livros à mão] e, desta vez (acho que das outras vezes também), vou fazer um convite mais abrangente à leitura, à descoberta de uma voz polonesa que, graças principalmente à iniciativa da tradutora Regina Przybycien (na última coletânea publicada, [para o meu coração num domingo], em parceria com o tradutor Gabriel Borowski), chegou “em volume” aos leitores brasileiros em 2011.
Wislawa Szymborska nasceu em 1923 no vilarejo de Bninie, na Polônia. Morou em Cracóvia desde 1931 até sua morte, em 2012. Em 1949, publicou seu primeiro livro e este foi censurado pelo Partido Comunista por ser considerado “obscuro demais para as massas”. Essa censura pode ter sido um impulso para ela reinventar sua escritura. Em meio século, publicou doze livros, nos quais trata de temas como ciência, guerra, História, morte, sonhos, eventos cotidianos, mitologia, antropologia com linguagem simples, humor e ironia. O que de início aproxima o leitor à sua poesia é a leitura agradável, o reconhecimento dos vocábulos e, logo em seguida, ele se vê imerso nas reflexões filosóficas densas à que a poesia de Szymborska o conduz. E não é que na simplicidade, no cotidiano, na vida vivida é que estão mesmo os mais profundos questionamentos, a verdadeira filosofia?
A editora Companhia das Letras, quando procurada pela tradutora Regina Przybycien, acertou em cheio ao apostar na publicação de Szymborska. O primeiro livro, [poemas], de 2011, virou um best-seller da poesia (não à toa, vendeu mais de 30 mil cópias). O segundo livro, [um amor feliz], foi publicado em 2016. Já o terceiro livro, [para o meu coração num domingo], foi publicado em 2020, um alento em tempos de pandemia.
Capas dos três volumes publicados pela editora Companhia das Letras. Aguardando o próximo!
Todos os livros são organizados de acordo com a ordem cronológica das publicações originais [de Chamando pelo Yeti (1957) até Chega (2012, obra póstuma)] e são edições bilíngues. Para quem entende polonês, é um bom recurso comparativo e de estudo da tradução. Para quem não entende, fica a imensa gratidão aos tradutores.
Szymborska ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1996. Em determinado momento de seu discurso, “O poeta e o mundo” (na íntegra no livro [um amor feliz]), ela diz:
Como não amar… Meu poema preferido, que pelo menos uma vez por ano compartilharei com amigos, conhecidos e desconhecidos que me leem aqui, foi publicado no livro [poemas], e está na página 63:
A vida na hora
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.
De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado —
eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).
É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
Valha-me! Esse é um dos motivos palpáveis e comprovados por que não posso recomendar apenas um de seus livros. Recomendo todos, inclusive os publicados pela editora Âyiné (que só publica preciosidades). Em 2018, publicou o divertido livro Riminhas para crianças grandes, traduzido e organizado por Piotr Kilanowski e Eneida Favre. Esse livro é composto por um texto introdutório e uma explicação sobre os gêneros poéticos presentes no livro, e, no final, em um “envelope”, há cartões-postais com colagens que Szymborska fazia em suas férias e presenteava os amigos (tenho certeza de que, se estivesse por aqui ainda, amaria os memes!).
Em 2020, a Âyiné publicou a biografia de Wislawa Szymborska, Quinquilharias e recordações, de Anna Bikont e Joana Szczesna, traduzido por Eneida Favre. Ainda não a li, mas está à espera aqui em casa.
Semana sim, outra também, a poeta polonesa Wislawa Szymborska está ao meu lado no sofá, na mesa de trabalho, nas redes sociais. Ela é uma presença na minha vida, alguém que quero ter para sempre por perto para filosofar, rir, chorar, para me inspirar. Preciso da companhia de pessoas inspiradoras e simples, com um olhar gentil e realista, lúdico e pé no chão para a vida. Acredito que uma vida de alumbramentos e de “não sei”, além de ser possível para além dos textos impressos em livros, é algo a se almejar, humaniza. E você, o que acha?