por Liliana Pardini
Conseguir este livro, Cartas a Lúcilio, foi difícil. Queria a mesma edição que foi citada no Atlas do Corpo e da Imaginação, do Gonçalo M. Tavares, que é o meu “livro de areia”, um livro infinito. Numa viagem a Lisboa, procurei em livrarias e na própria Fundação Calouste Gulbenkian, a editora, e todos me diziam que estava esgotado há anos. Na rua da livraria Bertrand, encontrei um livreiro que montava sua banca de livros antigos e arrisquei. Ele me pediu para voltar dali três dias. Quando voltei, ele me disse que não tinha conseguido, mas que me venderia a própria edição. Graças ao Paulo, com quem troco emails até hoje, consegui embarcar nessa viagem, que se iniciou em setembro de 2018.
Gosto do cheiro do livro, de acariciar a textura do papel de suas folhas. Tem cartas que me fazem sorrir, que me dão raiva, que me perturbam, que me põe em dúvida, que me fazem afastar do livro por semanas. No fim do ano de 2020, depois de já ter passado da metade, comecei do início de novo, junto com mais duas amigas. Recentemente, reencontrei a carta que me afastou do livro meses atrás, a carta 58.
Li com os olhos que tenho agora. Grifei outros trechos, reli minhas impressões, contestei o que antes não tinha me afetado, fiz uma orelha na ponta da página.
Ele começa falando sobre “o ser” e suas divisões em gênero e espécie. São quatro páginas tranquilas, sem sobressalto, até dizer: “Quanto aos ‘animais’, em quantas espécies dividi-los? Em ‘mortais’ e ‘imortais’. Como?
“Na natureza (…) há coisas que existem e que não existem; ora mesmo estas estão compreendidas na natureza. É o caso dos produtos da imaginação, tal como os Centauros e os Gigantes, e tudo o mais que, originado por falsos conceitos, acaba por obter uma certa imagem, embora desprovida de substância.’”
Não é interessante? Consideram como seres os imortais deuses gregos, todas as infinitas ideias, o vazio ou o tempo.
E só para bagunçar um pouco mais o ego: “Às coisas que podemos ver ou tocar Platão recusa-se a incluí-las entre os seres que ele considera dotados de existência própria, já que estão num contínuo devir, sofrendo permanentemente acréscimos ou mutilações. Nenhum de nós é na velhice idêntico ao que foi na juventude; nenhum de nós é pela manhã idêntico ao que foi no dia anterior. Os nossos corpos fluem rapidamente como a corrente dos rios. Tudo o quanto vês acompanha o veloz fluir do tempo; nada do que vemos permanece idêntico; eu mesmo, enquanto falo na mudança das coisas, já mudei.”
Por conta da consciência dessa fluidez, o filósofo diz se espantar com “loucura que nos leva a tanto amarmos essa coisa fugidia que é o corpo, e a temer morrermos um dia quando cada momento é a morte do estado imediatamente anterior.”
Será que dá para superar o medo da morte usando apenas a razão? O maior dos medos humanos. Por sinal, Dostoiévski chegou a dizer que o medo da morte é a origem de deus. Faz pensar.
Me aproximei e me afastei dessa ideia várias vezes. Quis ignorar, me angustiei, até que resolvi olhá-la de frente. Sim, sou mortal. E só porque vou morrer é que vivo. A morte nasceu comigo, tenho um esqueleto estruturando meu corpo. E já que viverei com ela/ comigo até o fim, que sejamos boas companhias/companheiras.
“Será agradável convivermos conosco o mais possível, desde que tenhamos nos tornado dignos de proporcionar uma companhia aprazível.”
Mas Sêneca aprofunda um pouco mais essa espetada: “devemos nós minimizar a última fase da velhice e, em vez de aguardar nosso fim, apressá-lo com as próprias mãos?”
Bem, não só absorver a mortalidade, mas também ser capaz de definir seu próprio fim. “É da maior importância saber se o que se prolonga é a vida ou é a morte. Se o corpo já não está à altura das suas tarefas, porque não havemos de libertar a alma de seus entraves?”
Entende agora meu embate com esse livro? Queria muito que ele ainda estivesse vivo, para que pudéssemos conversar. Ele diz: “Morrer para evitar a dor é uma atitude de fraqueza e cobardia; viver só para suportar a dor, é pura estupidez.” E eu perguntaria: “e como saber esse momento?”
Tenho uma lista de perguntas para ele. Um caderno onde vou anotando o que sinto durante a leitura. Essa reflexão sobre a morte tem um lado potente. Escolho com mais frequência a forma como quero viver cada instante. A vida fica com um sabor mais intenso. E, dizem, essa é a grande inveja que os deuses imortais têm dos humanos: vivemos conscientes do fim. Deixa a vida diferente, não?
Já que não tenho Sêneca, topo conversar com o leitor que chegou até aqui. Porque, ao contrário de mim, esse assunto não tem fim.
Lúcio Aneu Séneca
Fundação Calouste Gulbenkian
2004