Carolinas

por Josi Lima

 

 

Carolinas, organizado por Julio Ludemir, ilustrações Thais Linhares, editora Bazar do Tempo, Flup (2021).

 

 

Alguns vazios são maiores que uns cheios, gosto dessa frase, gosto da ideia de contraposição que a gente dificilmente pensa, do vazio e do cheio. Quando falamos de literatura e de todos os anos de produção e de todos os livros já lançados no Brasil até hoje, sabemos que existe um espaço que precisa ser preenchido (e vem sendo, atualmente, a passos mais rápidos do que já foi anteriormente) e muitas propostas têm aparecido, afinal, não podemos evitar o saber que estamos em um campo de disputas e as narrativas são formas de construir e ler o mundo. Atualmente temos muitas vozes dispostas a ocupar o vazio que o silêncio produz, e o livro Carolinas é uma dessas coletâneas dispostas a encantar o silêncio (os vazios) com novas vozes, novos escritos e um tanto novinho em folha de possibilidades. A Flup, Festa literária das periferias, que anualmente reúne autores periféricos cariocas, consegue, a partir de uma chamada aberta, reunir autoras, vozes negras potentes de todo Brasil. Este processo específico, aplicado por meio do Zoom (devido à pandemia) foi uma novidade até mesmo para a organização deles, mais de 200 mulheres foram selecionadas a partir do envio de cartas para a nossa imortal, Carolina Maria de Jesus, todas as cartas foram lidas  e  além de um processo formativo, que por si só já seria muito bonito e potente,  a Flup convidou para mediar esses encontros nomes  de peso como, Cristiane Costa, Itamar Vieira Junior, Eliana Alves Cruz, Ana Paula Lisboa… um prato cheio de boas produções e trocas. Mas a grandiosidade disso tudo não para por aqui, ao abrir a chamada para mulheres de todo o Brasil, acabou promovendo o acesso a este espaço, a interação entre estas mulheres reforçando, mesmo que a ideia inicial nem tenha sido essa, a realidade na qual mulheres negras são projetos de mundo, de futuro, ampliando horizontes e produções. 

Cada grupo de trabalho foi um universo, que foi se organizando a partir de suas participantes gerando assim um livro diverso, não só em tantas vozes, mas também nos gêneros em suas páginas.

Eu sou uma das felizes autoras deste livro e com muita honra e alegria te convido a mergulhar juntinho comigo nessas vozes-mulheres, negras vozes, Carolinas. Fiquei um bom tempo pensando em como apresentar esse livrão de peso em tantos sentidos, ao todo são 559 páginas que valem muito a leitura, e aí como fazer? Decidi que faremos um passeio com meus comentários abelhudos por alguns textos, está bem? 

“Quem algo tem para contar não some até que tenha dito” quando li essa frase parei e respirei fundo, a escrita de mundo de mulheres negras sempre tem esse momento em que você toma fôlego para seguir o fio e o raciocínio. Esta frase é da poeta, Lara de Paula, uma mineira que por sorte minha foi uma das primeiras autoras que conheci, por conta da organização em ordem alfabética dos grupos de trabalho, estávamos juntas e, mesmo online já se formou a aliança Minas-São Paulo. Lara criou uma carta onde Luzia, a nossa ancestral, nossa mais velha, envia a Carolina e estabelece a relação que elas têm com suas similaridades e singularidades, e mesclando arqueologia com poesia, ela trouxe um tanto de realidade como se pudéssemos enfim ter algum vislumbre de quem foi esta mulher, como viveu, como sentiu e como ainda vive e revive sempre que uma de nós tem algo para contar. 

Aline Mariano faz revolução, algo autobiográfico que nos aproxima da zona leste, sua infância e seus afetos, “Por que quem amamos dorme antes da gente acordar e entender o que é sono” é um subtítulo que ela usa para falar de forma muito leve sobre a morte de sua avó e tudo o que fica nela, dela, para ela. O texto que se segue é poesia pura, voz que brada e ao mesmo tempo sussurra, fala da dureza e da leveza de ser flor de asfalto. 

Outro respiro, falei de dois textos, tomo aquele gole de água e te convido a tomar também!

Um Deus de Ébano entra no trem, pela narrativa de Carolina Azevedo a gente consegue imaginar esse homem, e minha nossa, querida leitora, que homem! Ela narra os caminhos do trem que ela embarcou, descreve a situação e a gente vai com ela torcendo para um final feliz, eu pelo menos sempre torço, sou daquelas que ama comédia romântica, a escrita da Carolina é envolvente demais, não tem como não sorrir com essa narrativa. Aqui a gente tem uma leveza, um cotidiano bom do nosso existir, sabe? e Vizinha de página a ela, outra Carolina, Carolina Santos, que começa sua narrativa como quem dá a receita de um bolo “Cacau em pó. Farinha. Leite. Manteiga. Ovos. Açúcar e Fermento. Para mim, o amor tem gosto de bolo. Bolo de Chocolate. “Siimm, daqueles bem fofinhos, dá até para sentir o cheiro do amor, do bolo. A leveza que nos é tão importante e negada esta aqui, impressa nessas palavras, a importância de sermos também encontros e risos, ser feliz também é um ato de resistência.

A partir da página 148, as vozes se misturam, juntas essas mulheres escreveram um diário, muitas vozes, vários relatos e vários gêneros, abrir o livro nessas páginas é quase ouvir o som, é sentir a escrita, o pulsar de diversas vozes, o barulho de diversos teclados, o timbre e os tons que vão formando um diário bonito, com datas que se assemelham ao diário de Carolina, mas mais que isso, é um rever, um reviver, um reescrever.

Eu poderia ficar escrevendo e conversando com você sobre texto a texto, sobre as diversas profundidades e belezas alcançadas, mas acho que a delícia aqui é você chegar até esse livro e fazer o seu mergulho, mas, antes de parar de falar delas “Todo corpo preto é um palimpsesto e publicá-lo é mudar o país.” eu não poderia deixar de falar do texto-força, texto-manifesto da Mariana Luiza, publicadas nessas páginas muitas possibilidades de mudar o país que vivemos, não teria como me furtar de grifar essa frase aqui, nesse humilde texto que você lê agora. 

Entendo ao findar esta leitura que todas essas mulheres, e tantas outras que não estão nessas páginas, carregam em si um tanto de Carolina, um tanto das escrevivências presentes ali, que faz com que entrelacemos as nossas histórias e memórias. Em tempos em que se morre mais do que se vive, Mulheres negras escrevendo contos, cartas, crônicas, poesia… são o registro para a posteridade, afinal escrever nos torna imortais, cada vez que alguém nos lê, e ler estas mulheres é imortalizar o grito, o choro, o amor, a paz, a felicidade e tantas outras belezas e forças presentes nos corpos pretos espalhados por este Brasil. 

Boa leitura!

 
 
 
Josi Lima é poeta, mãe, geminiana, bissexual, candomblecista e mais um monte de outras coisas que tá descobrindo. Formada em letras, atua como professora na rede municipal de ensino em SP, onde aprende mais do que ensina. É também mestranda em artes pela Unesp, com uma pesquisa sobre identidades negras e coletivos Culturais, escreve desde sempre e ousa dizer que encanta as palavras.

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