(Amor)talhamento: travessias do amor(en)talhado nas peles à mel e dendê, do coser das feridas até a cicatriz

por Juciane Reis

 

Para Ọ̀ṣun, Ndanda Lunda e demais águas…

 

(Amor)talhamento: afetos que cortam, ferem, impregnam e inscrevem-se nas memórias do corpo, abrem sulcos difíceis de suturar nas peles dos seres amados e dos amantes.

A rede se tece a partir de Madú, a voz-guia pelos fios interligados, fiandeira de cada esquina, urdidura, encruzilhada, a guiar a si mesma no texto-tecido, e esse a engolir Isalu, Maris, Danda, Téo, Dre, entre outras existências dúbias. 

Portando o luto, Madú leva a mortalha como segunda pele, repetindo diariamente o ofício de (re)fiá-la indefinidamente. Corpo-água que não pode retornar à nascente, observa os fluxos harmoniosos de suas irmãs, Maris e Isalu, pelo rio de sua mãe, Danda, enigmático olho d’água.

Madú, como braço das águas da mãe, para sobreviver, precisa ir além de veio, tem de alimentar ao próprio curso, como também o faz a sua irmã, Maris, dado que Danda, com a morte da menina dos seus olhos, Isalu, entra em processo de seca. 

Um rio quando morre, perde-se um mundo. Toda a vida latente, fértil e fecunda, esvai-se. Quando um rio seca, mata-se o espírito que o alimentava enquanto existência. Assim foi com Danda, degradada pela morte da filha, lua cheia a abrigar e semear a vida. O que há da maré, sem o escoar lunar?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No processo de (re)tecer a mortalha, própria e a dos afetos, Madú desliza pelos fios trançados, realizando um bailado de Ariadne, cíclico pelos entremeados de uma temporalidade principalmente psicológica, onde o tempo e o espaço constituem-se, sobretudo, de memórias, são regidos pelas recordações.

Assim, Madú entrelaça em sua costura de lágrimas e lamentações, as dores provindas do ceifar lamentável e precoce do seu primeiro amor, Dre, personificação do sonho; com o feminicídio da irmã, Isalu; e a ruína e falecimento da mãe, Danda. 

Nomear Dre, como uma espécie de utopia, é uma forma de reterritorializá-lo, ânsia da qual partilha a própria Madú, ao se deixar guiar pelos devaneios esboçados por ambos, à agonia da partida traumática.

A presença das águas oxúnicas na narrativa, levam Madú, durante o funeral de Dre, a acolher em si o grito da mãe de seu melhor amigo, como se suas entranhas o produzissem. 

A enunciação coletiva no ato, realiza-se na vibração das mães primeiras, as senhoras dos pássaros da noite, pois o grito de uma mãe que perde um filho, reúne todos os gritos de todas as mães que perderam um dia as suas crianças. E, Madú ressoa com ele, nesse momento, por ser vazão da mãe do rio. 

Como o caronte, a carregar as almas pelas águas que separam os vivos dos mortos, Madú leva-nos em seus cruzamentos, atravessando o inframundo dos seus fluxos internos. 

O pagamento para adentrar em seu barco, é o acompanhá-la em sua rota, passando pelas turbulências e tempestades do banzo, até aportar no ponto de expurgo, em que a liberação seja partilhada, vinda tanto para a narradora-personagem, quanto para o leitor. 

Nesse pontoÈṣù se faz presente, por ele também transitar entre o ̀ọrun e o àiyé, sendo próximo ao terreno e ao sagrado. Devido ao seu tempo espiralar, cíclico, de repetição, acompanhar os traslados memoriais de Madú é adentrar em suas esferas, habitar os seus anéis, especialmente, no momento em que a personagem parece demasiado próxima do entre-véus, das bandas do mistério.

Téo, contraparte de Madú, flui na narrativa como o princípio masculino, buscando o equilíbrio das forças. A sua comparação com uma ave-do-paraíso, liga-se à regência do caçador de uma flecha só, o senhor da terra, da fartura e da prosperidade. 

Ter a cabeça coroada por Ọ̀ṣọ́ọ̀sí, significa prover-se e aos afetos, do alimento necessário. De acordo a fome e a necessidade, a vibração deste caçador expõe um guardião popular, estimado pela sua comunidade. A representação da energia de Ọdẹ, a força criadora das origens, encontra-se em cooperação com a de Ọ̀ṣun. Assim surge Lógún Ẹdẹ, o orixá caçador e guerreiro, nascido do encontro do rio com a mata.

Téo e Madú podem ser lidos à luz deste (re)encontro perpétuo, como capazes de conceber a beleza da vida dentro dos domínios da exuberante riqueza e formosura do príncipe de Ẹdẹ. Tido como o patrono dos caçadores, o fruto de tal (re)união é altamente adaptativo, fascinante e audaz. É o pavão com a cauda iridescente em leque, atraindo àqueles que ousem contemplá-lo, com os seus atributos mais diversos.

Quando Téo, regido pela terra, encontra Mádu, regida pelas águas, produz algo arrebatador: os caminhos se encruzilham nas qualidades de cada potência, e assim brota a semente originada dessa (con)fluência: o poderio da guerra a carregar o fio que corta, enquanto reflete; o exímio caçar nas margens profundas do próspero rio. A origem da existência pode ser admirada em toda a sua exuberância e reverberação. O mundo se (re)encanta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

JUCIANE REIS é a terceira dos filhos da família Reis-Santana. Ainda em tenra idade decidiu se tornar escritora, e, na adolescência, em vias de concluir o Ensino Médio, elegeu as Letras para dar caminho ao sonho. É Graduada em Estrangeiras e Mestra em Estudos Literários pela UEFS. Em 2016 fez intercâmbio em Rennes, capital da Bretanha, onde pegou disciplinas a nível de mestrado, sobre as Américas. Atualmente, está em doutoramento pela UFBA, no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura. Dedica-se aos estudos da memória na obra do cineasta baiano Fernando Coni Campos, e desenvolve, no tempo livre, o projeto pessoal acerca de Exu como fundamento epistemológico nas artes negro-brasileiras. Os seus escritos são costurados a partir de sua noção de ancestralidade, tão impregnada pelas Ìyá das águas doces e das águas salgadas, bem como, o caçador de uma flecha só. Tem alguns poemas publicados em antologias e o seu primeiro livro solo foi lançado pela Editora Kitembo, intitulado (Amor)talhamento (2021).

 

 

 

Cursos d'A Casa

[31/07/21] Bate-papo: Paraskeué e os processos de cura – com Flávio Fêo e Naine Terena

[27/07/21] Poesia marginal e periférica – com Jéssica Balbino

[27/07/21] Mergulho na História: o Lobo – com Ana Luísa Lacombe

[26/07/21] O ovo, a tartaruga e a noite: mitos de origem e o gesto criativo – com Ana Gibson e Juliana Franklin

[23/07/21] Uma leitura indígena sobre o Pensamento de Fanon – com Geni Núñez

[22/07/21] #artistaDEFpresente: novas perspectivas sobre o corpo com deficiência – com Estela Lapponi

[21/07/21] Estudos para nascer palavra – com André do Amaral

[21/07/21] Poéticas caiçaras: memórias subterrâneas e oralidade pulsante – com Janaína de Figueiredo

[19/07/21]Conversas ao pé do fogo. Viver e contar: a maravilha dos mundos – com Mara Vanessa