por Gabriel Biasetto
Aqueles que produzem literatura quase nunca deixam de lado os desabafos quanto às frustrações e as dores do amor romântico – também são temas universais a morte e a passagem do tempo. De alguma forma, nós, leitores, buscamos uma certa resignação no que diz respeito à identificação por tais temas. Qualquer pessoa que esteja sofrendo por um amor não correspondido, encontrará, por exemplo, um grande alívio ao ler os famosos Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. Por isso, pensando no verso de Mario Quintana – quem faz um poema salva um afogado – posso afirmar, sem sombra de dúvida, que a literatura está aí para nos trazer conforto, mesmo quando trata de assuntos desconfortáveis.
Embora eu seja um diletante do amor e busque sempre legitimar as minhas paixões desenfreadas e inconsequentes na busca por alguma leitura que acalme o meu coração e abrace as minhas intensidades, tenho me sentido especialmente atraído por um tema que, vejo por aí, é bastante evitado: a solidão. O fato de estarmos, do início ao fim, sozinhos. Mesmo acompanhados, mesmo cercados por multidões e vozes que nos habitam durante a rotina e a banalidade do dia a dia, sabemos que a conclusão final quanto à condição humana é uma só: estaremos sempre sozinhos. E, porque a literatura é como uma boia e os livros são a nossa salvação das dores da existência, tenho sentido uma necessidade imensa de oferecer ao mundo uma leitura que me fez companhia e que foi ao encontro das minhas angústias, anestesiando-me de tais constatações.
Eu nunca tinha visto – não da forma como fez Marina Colasanti – a solidão ser um tema tão confortável e acolhedor ao leitor como em Eu sozinha, romance no qual Marina mistura elementos de sua realidade e resquícios da ficção que ela cria para si ao retratar a sua relação com os espaços solitários (físicos e psicológicos) de sua rotina. É o que podemos chamar, talvez, de autoficção.
Jamais hei de saber a imagem que os outros têm de mim. Eu me conheço dos espelhos, das fotografias, dos reflexos, quando meus olhos param para se olhar e a diferença de ângulos impede criar uma dimensão real. Não sei os movimentos do meu rosto. Nunca me vi pela primeira vez. Tenho, de mim mesma, uma ideia preconcebida que alia o espírito aos traços fisionômicos e ao desejo de uma outra beleza. Criei, assim, uma pessoa invisível, mais real, para mim, do que qualquer outra. Dessa pessoa eu gosto. E, talvez por saber-me sua única amiga, ela me enternece profundamente.
São essas as palavras que dão início à pequena prosa – 112 páginas – na qual Colasanti revela ao leitor algo que só percebemos quando aceitamos a solidão: é possível que possamos nos apaixonar pela nossa própria imagem. São as nossas manias, os nossos desassossegos, os contornos físicos e emocionais do nosso corpo – da casa em que habitamos e que somos nós mesmos – que nos permitem segurarmos as nossas rédeas. Marina dá um presente ao seu leitor, pois assume aquilo que poucos tem coragem de revelar. Ela dá sentido à solidão, testemunhando a si mesma na paisagem visual que é a sua rotina.
Há um verso de Fernanda Young que diz o seguinte: entender é trancar-se dentro da palavra. Ao terminar a leitura de Eu sozinha, lembrei-me imediatamente desse verso. Tranquei-me dentro da solidão de Marina Colasanti, senti-me abraçado por ela – firmei uma espécie de acordo comigo mesmo: serei sempre uma boa companhia para mim. Porque a solidão, embora assustadora, é também um grande alívio.
No domingo longo, sem sol, as horas se esgotam lentamente, sem alterar a luz, e eu, fechada neste apartamento, me sinto perdida no tempo. Houve a manhã. Dia de descanso, despertei cedo, ciente da inutilidade de minha disciplina. Ninguém em casa. Todos os ruídos vêm de fora. O abrir dos meus olhos não alterou nada, e, mesmo no sono, eu já conhecia os ruídos, e a imobilidade das coisas. Tenho quase vontade de ficar na cama, parada, e deixar que o dia se acabe sem minha participação. Mas estou acordada, e levanto.
É por me lembrar dos domingos solitários e melancólicos que senti uma ternura muito grande por Marina Colasanti e por sua confissão quanto à permanência da solidão dentro de si. Um livro muito necessário e corajoso, que nos lembra da nossa capacidade de adaptação em meio à multidão que muitas vezes faz com que nos sintamos tão pequenos. Aos solitários, assim como eu, que assumem a sua condição, deixo aqui uma sugestão de leitura que nos acompanha e alivia, mesmo quando nos vemos trancados em nós mesmos.
Gabriel Biasetto nasceu em Bragança Paulista (SP); é formado em Letras e pós-graduado em Literatura Inglesa. Professor de Inglês e Língua Portuguesa, publicou, em 2021, o romance Quando ainda era verão (Editora Patuá).