A partilha do incomum - ou a invenção constante é uma ave plena, por Renata Penzani

 

por Renata Penzani

 

 

Legenda: Instalação artística «Almoço no campo», de Ilda David, inspirada em um livro de Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig, que capta a descrição de um almoço imaginado por Fernando Pessoa.

 

Em outubro, eu li uma matéria na Revista Quatro Cinco Um chamada Partilha do sensível  (https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/laut/partilha-do-insensivel), que dizia do quanto nós perdemos a capacidade de vivenciar coletivamente o absurdo. Estamos já quase na metade de fevereiro e eu ainda não esqueci essa ideia da incompreensão como uma experiência partilhada. Eu tinha acabado de começar a ler o livro Partilha do incomum, e me pareceu que os dois textos conversavam, não só pelo nome, mas pela intenção, mesmo sem nunca terem se visto.

Comecei a ler livro Partilha do incomum (Editora UFSC; organização de Maria Carolina Fenati- https://editora.ufsc.br/2016/07/05/partilha-do-incomum-leituras-de-maria-gabriela-llansol/) pelo título, que me fisgou sem eu saber o porquê. Logo eu, que mesmo depois de tantos convites para mergulhar na obra da poeta portuguesa Maria Gabriela Llansol, ainda não tinha conseguido. O livro reúne ensaios de diversos autores que compartilham suas impressões, sensações e teorias suscitadas pelas leituras de Llansol – entre eles o escritor Gonçalo M. Tavares, o professor Álvaro Faleiros e a poeta Julia Studart. Todos reunidos por naturezas diversas de encantamento a respeito de tudo o que brota da escrita enigmática, cifrada e ao mesmo simples e comum da escritora.

Ou seja, não é escrito por ela – embora traga inúmeros trechos de textos seus -, mas sim acerca dela. Acercar-se: eis a possibilidade única diante daquilo que não conhecemos ainda. Então, eu entrei nessa obra sobre ela antes de lê-la propriamente, pelo menos não em profundidade. E foi tão bom. É como ler os relatos de um viajante sobre um rumo desconhecido antes de chegar a ele.

Eu, do meu lado, acho que é assim que chegamos a alguns livros, como um estrangeiro. Como um turista em férias. Como alguém que não sabe ainda onde está pisando, mas tem certeza de que quer sim pisar ali, por algum motivo chegou até ali e dali não quer ir embora.

Então, eu que continuo conhecendo só o suficiente sobre Llansol para saber que ela fala uma língua parecida com a qual eu quero me comunicar no mundo, não posso fazer muito além de dividir aqui alguns dos meus trechos preferidos desse livro imenso. Hoje são esses, daqui a cinco minutos seriam outros.

Então, vamos lá, dois pontos:

“Há, pois, duas partes, a folha que espera e o texto impaciente. Um texto é pousado sobre uma página e esse contato torna-se conversa ou luta. A página recebe o texto, trata bem o hóspede; ou não. Por vezes, a página habituada a ser passiva diz ao texto: por favor, mais devagar. Como se a folha em branco fosse um moderador de uma qualquer velocidade estética que todos sabemos reconhecer, mas não descrever.

Mas claro que o texto não é apenas um estrangeiro simpático que vem de fora para se acomodar às regras do espaço em branco. O texto impõe também novas regras ao espaço branco.

E eis como em certos dias os textos aparecem: há um qualquer animal – que ninguém viu e de que ninguém saberá algum dia o nome – que deixa atrás de si um traço, um vestígio.

Esse traço-vestígio é o texto.” – Gongalo M. Tavares, p. 19

“Agora não leio tanto. O pensamento é raro. A ficção abundante, e sempre (ou quase) infantil. Ler é trazer a si, mas não cenas e imaginação. Trazer o real de outra vida que nos chame humanos. E num só instante”.

– Maria Gabriela Llansol, p. 51

“Walter Benjamin, em algumas de suas anotações reunidas com o título de ‘Imagens de pensamento’ se pergunta: “Será que o gosto pelo mundo de imagens não se alimenta de uma sombria resistência contra o saber?”. Depois, ao final do fragmento, afirma: “[…] pôr termo à natureza na moldura de imagens esvanecidas é o prazer do sonhador. Conjurá-las sob uma nova camada, o dom do poeta.”

– Julia Studart, p. 51

“‘Sentar-se no alpendre do mundo, que dá para a paisagem e adaptar o olhar às modificações imperceptíveis que se desenham’. Essa é a matéria-prima com que Llansol escreve e vive, apenas seguindo a lei da intensidade. Para ler ou ver, não como mera informação, mas como um exercício intelectual, dizia o escritor americano Henry Thoreau, teremos de nos pôr em bicos dos pés. Talvez Llansol acrescentasse: não para ver mais longe, mas para ver mais intensamente e poder lançar para o infinito as ideias que vêm ter conosco. E sempre numa relação dinâmica que no olho de quem vê procura refletir a fala do objeto que é olhado, aí construindo a ideia que pretende lançar para longe”.

– Maria Etelvina Santos, p. 104

“O filósofo Spinoza, figura maior na obra de Llansol, mostrou-nos a necessidade de, relativamente ao conhecimento, nos situarmos na confluência de dois movimentos: o que ilumina (porque dá a luz necessária) e o que deslumbra e fascina (pelo excesso de luz ou brilho). Nessa intersecção, na confluência desses dois modos se mostram o visível e o invisível, o inteligível e o sensível, se encontram a fenomenologia da percepção e a metafenomenologia das pequenas percepções, porque também aí se mostram ‘as pequenas percepções que fazem aceder ao invisível”.

– Maria Etelvina Santos, p. 106

“Para ser objeto de amor ou alguém de amor, que não tem necessariamente de ser alguém humano, basta simplesmente ser um da paisagem, um com quem se estabelece a chamada troca verdadeira, des-hierarquizada. É nesse sentido que Llansol refere o sexo da paisagem, um terceiro sexo tão complexo como os sexos humanos. Com ele, o humano pode entrar numa relação que põe a agir a imaginação criadora, na qual ‘fazer com os olhos’ ou conceber a ‘mais-paisagem’ pode ser entendido como o uso que fazemos do nosso sexo de ler ou de ver, da energia libidinal que pomos no olhar.”

– Maria Etelvina Santos, p. 120
“Uma confidência é ‘um dos lugares onde começa o mundo’”

“Escrever é sustentar um permanente combate contra o medo/a morte: ‘sei que o meu combate contra a morte (a morte não é um substantivo) é tecer em texto a perenidade das presenças já impossíveis’”.

– Maria de Lourdes Soares, p. 145

“Quando se escreve, só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outro”

– Maria Gabriela Llansol, p. 147

“Não sei refletir sobre a Poesia, sei ir à Poesia ________ e esperar, na ponta das pupilas, suas imagens. Quando o dia image[ce], sei que está criado o verbo imagecer, relacionado com a deslocação de um cisne nas águas do porto. […] É preciso assustar a Poesia para que – amanhã – ela regresse.”

– Maria Gabriela Llansol, p. 342

“Quando acabamos de ler o livro, depois de ter atravessado páginas inteiras de inteligência e de emoção, é legítimo de nos perguntemos: ‘que estive eu a ler? que coisa é esta?’”

 

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