Por Fernanda Pacheco
Li Maurice Blanchot pela primeira vez em 2015 após ganhar de um amigo o livro “Uma voz vinda de outro lugar” e de cara alguma coisa aconteceu. Era como se aquilo que tanto me perturbava e que tantas vezes saltava nessa imensidão que há dentro da cabeça ganhasse uma tradução. A questão é que nessa leitura me espantei e com o espanto algumas coisas começaram a ganhar sentido. Minha experiência com a escrita sempre foi permeada por gestos catastróficos e por certa catarse vinda de uma voz que dificilmente vem à tona de modo falado. Às vezes ela se organiza em versos, outras vezes em prosas curtas, outras vezes em avalanches de letras num fluxo que me permito sentir. É o fora, é o que sempre está aqui, mas quase nunca vem. O tal do por vir eletrizado e em constante movimento.
manuscrito I
manuscrito II
Dessa escrita que vive em combate comigo, comecei a pesquisar sua existência no âmbito escolar – o que de alguma maneira é impossível classificar em caixinhas e rótulos, mas que gosto de pensar como escolar porque é atravessada por padrões, avaliações externas burras e o vício da verificação, da correção. Atravessada principalmente pelas mídias digitais e por um discurso normativo que constantemente subestima os alunos, principalmente aqueles que estudam em escolas públicas. Como desviar desse caminho que engessa suas escritas, que as classifica e aponta se estão certas e erradas? Como manter o encanto (e o espanto) pela escrita tal como temos quando somos crianças? Como deslocar tudo isso e o que acontece no meio do caminho que faz com que a paixão acabe? Questões que aparentemente todos temos respostas, mas que na prática se desdobra em sucessivos problemas.
Durante um semestre, após o acolhimento e as conversas com o professor Júlio Groppa Aquino, passei a encarar o desafio de tentar transformar minhas aulas de História nesse espaço onde semanalmente os alunos parassem para escrever, mas uma escrita livre ou escrita-artista como venho aprendendo com Júlio e lendo também Sandra Mara Corazza. Passei a enxergar as aulas como esse lugar onde se respeita um dos pontos da ética foucaultiana (que aprendi também com o Júlio em referência a Deleuze): a dignidade de não falar pelos outros.
Comecei a visualizar que o tempo todo os alunos estavam escrevendo: nas mesas, nas paredes, nas portas do banheiro, nas páginas finais dos cadernos… Uma escrita que não cabia nas regras escolares. Uma escrita que era outra, que estava sempre às margens. A primeira proposta que fiz era, aparentemente, banal. Pedi para que todos imaginassem que eram alienígenas perdidos no Rio de Janeiro do começo do século passado. O que eles estranhariam? Eu precisava dar um recorte para instigá-los. No começo os alunos riram da minha ideia, mas no término da semana, das cinco turmas de 9º ano lotadas, todos os alunos tinham escrito. Quando me perguntavam: “Quantas linhas?” eu respondia: “Não sei. Como posso limitar o que você vai escrever?”, ou “E se estiver errado?” eu dizia “Está tudo certo, apenas escreva”. “Posso escrever imaginando Osasco naquela época?”, “Pode o que você quiser!”. A partir do recorte que eu dava, eu iniciava um processo de “esvaziamento” e de destruição da ideia de tema, de narrativa, de forma até que eles chegassem no ponto de colocarem no papel aquilo que queriam escrever. Eu li as coisas mais trágicas, li desejos, fragmentos de diários e palavras que de alguma maneira já estavam fervilhando neles.
Naquele espaço em que eles sabiam que podiam simplesmente escrever saiam coisas extraordinárias. No meio dos personagens, um pouco da realidade de cada um. Da experiência de vida, do que sentiam e pensavam sobre o contexto político atual, suas críticas, suas angústias e assim fomos caminhando até acabar o ano, com diálogos constantes e horizontais e com a abordagem do gesto também se relacionando com a criação de espaços para escrever (como a confecção de zines, colagens e cadernos artesanais). Me tornei leitora deles, inclusive agora, no meio da pandemia, estamos preparando um livro digital com textos, poemas, fragmentos e contos escritos durante esse apocalipse sem fim.
Ainda atravessando essa relação com a escrita, em abril iniciei uma editora virtual, a Entre Editora, com dois amigos artistas: Juliano Gauche e Ormando Zhiomn. Na verdade, eles começaram e depois Juliano me chamou para integrar a festa. Também criamos a revista Corpo Elétrico*, e tudo com o intuito de reunir e apresentar os escritos e outros trabalhos artísticos de amigos e novos colegas que estão diariamente na luta e na resistência, principalmente agora que o apagão cultural por parte do governo se intensificou. Enfim, de uma forma independente tentamos disseminar e incentivar que as pessoas – nesse estado de ruína constante – vejam na escrita uma forma de viver. É o que tenho feito durante minhas imersões no vazio e no silêncio e é o que tenho tentado demonstrar aos alunos e aos leitores também. A potência de viver a partir de um eu que é afetado pelos escombros, mas que se refaz a cada gesto.
Recentemente li o texto “Como um cão” de Sandra Mara Corazza e gostaria de deixar aqui um trecho antes de encerrar:
“A escrita-artista não é nunca simples. Ela não normatiza, não representa, não conta história, não ilustra nem narra o que se passou. Algo passa por ela. Traços, riscos, setas, marcas de espírito nela se exprimem e arrancam a significância do texto. De qual texto? Ondas, cascatas, olhos de ciclones, as palavras desse texto não correspondem a formas, mas só captam forças, que se exercem na folha em branco. Em branco? De jeito nenhum (…) Uma folha nunca está em branco, à espera de ser preenchida. Uma folha está, desde sempre, cheia! Povoada por muitos clichês, opiniões, imagens, lembranças, fantasmas, significantes. Por isso, o escritor-artista é um faxineiro: ele esvazia, raspa, escova e limpa (cf. Deleuze, 2002)”
Site da Entre Editora: https://medium.com/entreeditora
Instagram: @entreeditora
* referência ao poema “Eu Canto o Corpo Elétrico”, de Walt Whitman.