Por Ângela Castelo Branco
Conheci o Tim Ingold pelas mãos de Jorge Larrosa, que trouxe até a nossa casa um livro dele. Chamava: Une Brève Histoire dês Lignes, edição de 2011. Com uma capa toda branca e pontilhada em forma de raiz, de caule, de pulmão, de mãos.
O ano era 2015, havia um recém-nascido aqui e mais esse presente. Demorei dois anos para me encorajar a tirar o Tim Ingold da estante. Comecei por um outro livro dele, que já estava publicado em português, chamado Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição, publicado pela editora Vozes, em 2015.
O Estar Vivo de Tim Ingold falou tanto comigo que foi meu companheiro na escrita da tese de doutorado em 2018: seu conceito de lugar em detrimento da ideia de espaço, de material contra a ideia de materialidade generalizante, sua defesa sobre o ato de nomear como contar histórias, seu ensaio sobre a letra A que continua sendo A em qualquer circunstância, me encorajaram a compor meu texto em direção à escrita como experiência.
E também a imagem do fungo mycelium para sintetizar o pensamento filosófico descentralizado como desdobramento do conceito de rizoma de Deleuze e Gattari: http://cosmoseconsciencia.blogspot.com/2018/06/como-obra-de-tim-ingold-desdobra.html.
Agora na quarentena tive coragem de ir ao encontro de Une Brève Histoire dês Lignes. Parágrafo por parágrafo, linha por linha, letra por letra. E gostaria de destacar aqui uma frase, um único pensamento que já me valeu o livro todo: talvez seja a hora de irmos além do utopismo (da linha contínua, guiada pela solene narrativa do progresso) da modernidade e do distopismo (guiada pela linha fragmentada, por quebras e desvios) da pós modernidade para um topismo que reconhece que os seres humanos, como criaturas da história, criam lugares consciente e inconscientemente.
Isso me disse muito.
E, em busca de tatear esse lugar por onde mais me movo, compus uma linha derivante, ponto a ponto acerca da escrita:
Por uma poética e Topologia da escrita:
uma topologia e poética da escrita se revelaria na imagem da posição das mãos de quem está a escrever, mais do que o seu conteúdo. Na postura de dedos, se tortos ou não, se sujos de grafite, se em alguma parte sua carne está pintada azul. Haveria também que se observar a boca, se há um esboço de ler o que se escreve, mesmo que mudamente, se os lábios estão tensos, mordidos ou semiabertos. Se há secura, se precisa de um copo d’água, se parece sorrir durante. Se a cabeça pende para o mesmo lado. Se uma das mãos segura a cabeça para que a outra mão voe. Se a ponta da caneta já foi macerada pelos dentes. Se coça os olhos, se tira os óculos. Se os pontos de tensão do corpo são os mesmos pontos cegos da página. Se os pontos que irradiam calor no corpo são os mesmos que irradiam calor na página. Se os seus pés caminham, como caminha o texto.
Mãos: as mãos não realizam sempre o mesmo traçado da letra, nem o mesmo movimento, nem a mesma força. nem elas mesmas são iguais ou submissas entre si. isso dependerá do dia, do estado corpo, dos instrumentos usados e, principalmente, a quem se destina o texto. esse outro, sempre com um peso particular.
a mão é a parte mais próxima de ligação entre o nosso corpo e a quem nos endereçamos. o último fio de distanciamento. e, desse modo, é sempre o outro que tira o corpo de seu lugar comum.
Punhos: aparente ponto de apoio, de descanso e segurança na escrita. e, justamente por isso, pode se levantar e golpeá-la a qualquer momento. os punhos são capazes de suspender canetas e lápis no ato da escrita, parecem obedecer a um outro chamado, ao chamado das montanhas. formado por um conjunto de pequenos ossículos que são verdadeiras pedras cercadas de líquidos, o punho ama a topologia, reverbera os abalos sísmicos da terra, segue a voz dos tremores das placas tectônicas. vibram o que está dentro do mar. os punhos são a ligação entre o braço de terra e os afluentes de ar entrando, antes de seus rios desaguarem em linhas. por isso fazemos redemoinhos nas panelas, enrolamos a linha de volta em seus novelos, retiramos o pó das janelas, escrevemos: para escutar o que tem para contar o falcão depois de ter voado em direção a mais alta montanha dentro de nós mesmos.
Pontas: o lápis não é um objeto obediente. Nem a caneta. Largue-os no fundo de sua bolsa por algum tempo que eles começam a falar. Em cima da mesa, são um arsenal em potencial. Canetas destapadas jorram. Lápis espetam.
Todas as pontas apontam para o esquecimento. Uma ponta solta nunca será totalmente reinserida à consciência. Escavadora de terras anteriores, sempre em busca de uma camada mais profunda. Cutucam fósseis em busca dos sinais de uma presença. Sulco, incisão, marca, traço, rasura. Rudimentos de escrita que querem nascer outra escrita.
A ponta é o feminino do ponto. A ponta cava, escava, arranha a superfície. Penetra, quer adentrar a pele. Se o ponto é o máximo da concentração, a ponta passeia, deriva, quer seguir pelo encontro com os materiais. Há linhas que caminham na folha como se tivessem dado corda nelas. Há linhas que andam acordadas em pleno sonho.
Suportes: aquilo que recebe ou resiste? Recebe e resiste. Já foi argila, pedra, pele de animal, rolo, papiro, pergaminho, codex, livro. Hoje é celulose, fileiras de eucaliptos plantados perto da estrada, corpo, madeira, parede, tela. Papel, essa espécie delicada de folha de árvore, ainda nos toca por meio de sua penugem. Permite que o corpo deslize ao destino da linha.
Suportar, sustentar, imprimir, sobrepor camadas, palimpsestos, poder transportar, poder guardar, poder dormir, poder enterrar, poder sobreviver a incêndios, mesmo queimando. Toda página é uma paisagem.
Cadernos: o caderno parece que está sempre começando, porque é sempre preciso abri-lo. ali, onde paramos de escrever, não tem antes nem depois. é ali que ele começa. começa teus cadernos sem saber se irá terminá-los ou não. começa teus cadernos deixando a primeira página em branco sem saber por que o faz. começa teus cadernos e esquece de escrever teu nome na capa. destina-os mais uma vez a anotações de aulas e estudos. anota em teus cadernos as frases que te saltaram aos olhos e te esqueces da citação. invade teus cadernos com exercícios de paixão, letras de música, poemas, exercícios espirituais, contas, números de telefone, cópias, desenhos, recortes, suores. Invade teus pensamentos com teus cadernos.
Receptáculo, útero, líquido aminiótico que envolve a escrita, ninho, ventre, cúpula, conjunto de vozes e de orelhas dobradas e desdobradas. Coral onde posso esculpir minha própria voz. Arquitetura da minha tonalidade, morada do cuidado de si, hypomnemata.
Texto: da mesma origem da palavra texere, que significa tecer. Texto é a cópula entre o suporte, as ferramentas e o gesto. Tecido, tessitura atômica, lugar que viaja, trama que revela, malha de letras. Mexer em uma palavra altera o texto como um todo. Texto, aquilo que nunca está definitivamente acabado.
Letra: da família do desenho, a letra A já foi uma antiga cabeça de boi, mas agora não se parece com nada, uma sequencia de alguns movimentos cadenciados. uma letra no papel é diferente de uma letra bordada? letra: aquilo que não se parece com nada, que não se refere a nada a não ser ela mesma. aquilo pelo qual a voz passa, atualiza. Toda letra guarda e aguarda uma voz.
Pela letra podemos perfurar a própria língua, podemos ter vislumbres do real, do intraduzível, do infalável, do ilegível, a letra é um jeito de tocar a voz e não de prendê-la.
Mesa: a mesa nunca está suficientemente organizada, a luz nunca está devidamente confortável e o livro que resolveria de vez a sua mudez deixou de estar visível novamente. então, você pega algum outro na estante, aquele mesmo que acha que já venceu, e se pergunta: quem foi que grifou esse meu livro e fez anotações com a minha própria letra?