[Livros à mão] Ai de nós, bruta flor, por Renata Penzani

Exercer a liberdade de desviar dele me interessa mais (quando posso), e por isso fico achando que vai interessar mais aos outros também. Resolvi falar dos livros que conversam comigo, com os quais eu criei intimidades, que me escutam e me explicam; aqueles que todos os dias olham para mim da estante, meio sujos e usados: vividos.
Ai de nós, bruta flor, por Renata Penzani

por Renata Penzani

 

Quando a Ângela me convidou para escrever nesse cômodo da minha querida A Casa Tombada, aceitei a importância que isso tinha com muita alegria, e logo fiquei pensando em quais critérios iria usar. A tarefa é uma só: vir aqui com algumas palavras para indicar livros (o que eu leio como “provocar paixões”, arrastões às vezes, terremotos quase sempre). Sou jornalista, o que me obriga a situar as coisas no tempo. Então eu falaria sobre lançamentos? Decidi que não. Exercer a liberdade de desviar dele me interessa mais (quando posso), e por isso fico achando que vai interessar mais aos outros também. Resolvi falar dos livros que conversam comigo, com os quais eu criei intimidades, que me escutam e me explicam; aqueles que todos os dias olham para mim da estante, meio sujos e usados: vividos. 

 

“Írisz”, da Noemi Jaffe, é um desses casos. Logo ela que está com livro novíssimo no mundo, chamado “O que ela sussurra” – também uma narrativa potente, lançado em abril pela Companhia das Letras. Mas deixo este para os jornais, para as manchetes, para a urgência da crítica literária. 

 

A história, em Írisz, é de uma mulher que, no final dos anos 50, foge de Budapeste para o Brasil com o intuito profissional de estudar orquídeas – e a necessidade humana de perdoar, ou esquecer, o que às vezes dá na mesma. Acontece que esse é só o cenário de fundo para uma trama que se desenrola em outro lugar. Nas mãos cheias de metáforas dessa mulher que olha de perto para as flores e se vê refletida em um espelho dolorido de tão familiar. Ela se reconhece nas raízes aéreas, na fragilidade e na teimosia das orquídeas que, para o leitor, passam a se confundir com ela. O que essas flores bonitas, complexas e misteriosas são, ela passa a ser também. 

 

O livro se encaminha para um lugar de celebração da resistência e da beleza. Talvez por isso mesmo hoje, cinco anos depois de lê-lo pela primeira vez, ele fale comigo com tanta força. Coletivamente, o que significa falar sobre resistência hoje? Estamos buscando nossas raízes? Onde elas estão agora que tanto mudou de lugar? Quais são os lugares onde conseguimos resistir?

 

Quando vai descrever as orquídeas, Írisz diz que elas são tão excessivamente bonitas que parecem fazer questão de parecerem melhores do que o resto da natureza.

 

“Aos poucos, fui aprendendo que a raridade das orquídeas não significa distinção, mas defesa e resistência. Elas são raras porque sobrevivem às piores condições, porque criaram um sistema de sobrevivência que usa os nutrientes de outras plantas, sem prejudicar a ninguém. Você pode deixá-la praticamente sem água e sem luz e ela continua viva e fértil”.

 

Será que agora que cortaram nossos caules, nós vamos, assim como as orquídeas, aprender a crescer misteriosamente, na contramão das condições ideais? Será que essa convivência violenta com a morte nos obriga a finalmente a compreender o tempo? 

 

Do meu lado, continuo observando as orquídeas, cheia de perguntas. Perguntas com raízes aéreas. Encontro pistas, não respostas, e continuo assim. “Mas as coisas certas, nas horas certas, demoram a se revelar. Ficam nas raízes, na terra, no ar ou em algum lugar da memória, à espera de alguma situação ou afinidade, para então se manifestarem”.

 

“Írisz” – Noemi Jaffe

Companhia das Letras, 2015

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