por Talita Minervino
Muito delicado falar sobre o assunto.
Talvez por isto, ele tenha vagado por tanto tempo na minha cabeça antes de virar escrita.
Ontem mesmo, vendo sobre histórias de pessoas que perderam suas casas ou temerosas por perderem a vida de pessoas significativas, senti a delicadeza e o respeito necessários para colocar em poucas e cuidadosas palavras algo com tamanho alcance e devassidão.
Palavras que não tratem levianamente nossa catástrofe social ou banalize o entendimento de um estado de depressão que sempre precisa ser compreendido de forma muito particular e profunda.
Apenas uma conversa pequena, um olhar estreito, espreitando e acomodando o visto sobre experiências humanas em tempos de mais “isolamento”.
Na semana que me mudei de casa, o que significava uma mudança maior de vida, meus filhos começaram a falar de medos. Um com medo das plantas, o outro com medo dos barulhos.
O que pude perceber é que estávamos ali em um lugar desconhecido, onde ainda não era possível a experiência e o conforto de saber onde se está, onde está o interruptor na escuridão, como eu uso esta casa quando acordo, onde estão as minhas coisas, como eu movimento meu corpo neste espaço, quem e como faz parte desta casa… são tantas micro e profundas experiências que uma mudança carrega.
Quero dizer que a pandemia nos arrancou da nossa casa.
Nos levou para uma experiência violenta de insegurança.
Modificou o movimento dos nossos corpos, mexeu na estabilidade do nosso sustento material, mudou o entrelaçamento e enlaçamento de vinculações e, principalmente, nos colocou emparedados com as nossas mais profundas angústias. Uma experiência que se espalha para além do medo da perda da vida.
Existe um eu ameaçado.
Esta ameaça não está apenas na integridade física, mas na integridade de todos os “lugares” por onde o eu se encontra.
O que somos pode estar em tantas partes.
Em tantos encontros com determinadas pessoas, vínculos profundos, projetos, lugares, fazeres…
Por onde andava o eu de cada um… de uma forma um tanto espalhada… que até certo ponto, é assim que somos.
Mas ser arrastado para o recolhimento pode nos dar muitas notícias sobre nós mesmos.
As maiores angústias que acompanhei nesses momentos de isolamento foram a angústia de não se encontrar, o encontro com dores não visitadas e a angústia da solidão.
Existem muitas pessoas que tem sua existência sustentada, orientada muito fortemente pela ilusão da expectativa de um outro. Nenhuma novidade para todos nós neuróticos. Entretanto, quando a tentativa de encontro consigo traz uma forte sensação de vazio, de desconforto e estranhamento com a própria intimidade, eu diria que pode se viver algo do insuportável . Muito por construir, onde nem se encontrou chão.
Para outros, onde já se encontra algum chão, pode ficar mais evidente o encontro com sua própria vida, ou melhor dizendo, o desencontro. Uma não menos violenta necessidade de fazer um ajuste entre a vida que se encontra “dentro” com a vida que está “fora”. Na presença há percepção. Dos desconfortos, dores, desejos, faltas, conflitos. Ou ainda um desajuste quase que completos com os vínculos “mais próximos” ou “possíveis”. Tomados assim de nós mesmos vem a trabalhosa tarefa de fazer algo com o que se apresenta. Olhar… já é muito. Sentir… uma conquista. Elaborar, criar, encontrar caminhos já é o auge!
Uma terceira delicadeza conversa com a culpa. Com o arrependimento. Com aquilo que não se viveu por não estar verdadeiramente presente. Não se trata da ameaça do que se pode perder, mas sim a consciência daquilo que já vem perdendo. Não daquilo que deixará de viver, daquilo que se deixou de viver… Como se a falta da perspectiva de futuro e o escorregadio do presente nos colocasse em conversa com o passado… Com o que passou… Com a dor de não se perceber com um vínculo íntimo pare se ter como companhia. Um vínculo importante que esteja resguardado mesmo que à distância, tendo suas trocas afetivas vivas e asseguradas.
Estive espreitando por aqui…
Mas minha vontade de escrever começou com o pensar na combinação do medo com a tristeza…
Obviamente, é mais do que sabido e sentido que o medo nos salva.
Se há uma real utilidade para ele, é a proteção.
Mas hoje quero pensar no medo que para nos proteger diante das inseguranças – materiais ou subjetivas – acabam por nos entristecer.
Nada me convenceu mais do que a crença de Winnicott de que a experiência de alguma alegria está no fato de nos tornarmos cada vez mais nós mesmos. E para tal, há de se ter liberdades consigo e na vida.
Esses dias ouvi uma pessoa falando sobre sua dúvida sobre mudar-se ou não de casa e como a insegurança que sentia em relação à sua saúde a paralisavam, percebeu que sentir-se segura no seu lugar – casa concreta – e com o seu corpo lhe abria novamente sonhos e projetos, e enfim ela voltava a criar na vida e a criar a si própria.
Longe de mim afirmar pela ausência de incertezas… mas as inseguranças necessitam ser devidamente suportáveis para serem fonte de aberturas…
É no lugar e na companhia onde nos sentimos seguros, que os nossos corpos se movimentam com mais liberdade e nossos pensamentos ganham amplidão. No colo conseguimos chorar. A fala, o riso ou os mais temidos sentimentos se esparramam na confiança.
Ser casa para si. Uma tarefa difícil.
Não se trata de uma escolha, mas de uma possibilidade.
Algo que se relaciona com uma experiência já vivida. Um chão de terra batida. Confiança e espaço para a inclusão dos nossos pedaços espalhados ou escondidos.
Outra pessoa me falou sobre agora estar sentindo dores nas cicatrizes que “já cicatrizaram”, acho um bom começo…
Para quem já viveu de perto, sabe que uma das coisas mais difíceis ao cuidar de um bebê é suportar o seu choro. Aquele que se prolonga, quando não há nada a ser feito a não ser tolerar até que se possa fazer algo ou que simplesmente passe.
Temos o trabalho de suportar nosso próprio choro nestes tempos difíceis que ainda perduram. E com sorte, hora ou outra, encontrar apoios.
Dar lugar para os encontros com o difícil é a única abertura para que algo vivo possa ser encontrado ou criado.
É a nossa vinculação com a vida, uma dobradiça que permite movimentos, que com o tempo ganha ferrugem e cor.
foto: Talita Minervino
Talita Minervino Pereira
Psicanalista, tem como chão da sua clínica 18 anos dedicados aos estudos e cuidados em Saúde Mental, e os pensamentos de Donald W. Winnicott.
Atende n’A Casa Tombada e online.