Este texto é uma conversa com Pecola ou com qualquer leitora curiosa

 

por Josi Santos

querida Pecola, há algo que existe no silêncio colorido 

chamado de possibilidade

 

 

Este texto é uma conversa, entre mim e Pecola, e entre nós. É um remendo quase bagunçado, com o interesse de convidar à leitura da obra: O olho mais azul da escritora Toni Morrison, que explora ficcionalmente as complexidades da infância negra no contexto estadunidense em seus títulos, lidas também na realidade brasileira. Conheci Pecola, personagem que protagoniza a narrativa do romance, em uma das leituras realizadas no grupo de estudos Tessituras Negras: literaturas em prisma*. Juntas na roda há quase três anos, nós costuramos mundos possíveis, traçando estratégias contra hegemônicas, a partir de encontros potentes com as leitoras que compõem o grupo que incendeia meninas como eu e você. 

 

nos queima as bochechas 

e segura as nossas línguas 

amarram os nossos ombros curvados 

há algo em nossos olhos infantis que despertam o horror dos outros 

e dizem cala a boca menina

 

Do outono ao verão, em movimento cíclico, a partir de um clima tenso, o livro nos amarra em torno da Família Breedlove, instigando-nos a saber como “Pecola ia ter o bebê do pai dela”. É isso mesmo, de uma vez só, mas eu não digo mais, quem diz é Claudia e Frieda, duas personagens crianças, que a partir do olhar único que as primeiras idades possuem, nos guiam em uma narrativa de violência, que aquieta a cada palavra, e inevitavelmente, nos chama às nossas memórias. Sacode, se você me permite dizer. 

 

querida Pecola 

há algo em nós de tão lúcido 

que para além da dor 

é cor 

há algo em nós, Pecola, que atravessa o

ficcional para o real

e faz com que eu me sinta pra sempre

uma criança muda com oceanos dentro de mim

de olhos arregalados raivosos 

pedindo ao mundo pelas mãos um lugar ao sol

 

O romance trata sobre as diversas dores que atravessam o corpo negro, desde a infância, em especial das meninas negras, que assim como eu, talvez assim como você leitora, se viu pequenininha em um mundo que não te enxergava, mas anulava. Um rebuliço de sentimentos me atravessou, de como me sentia na escola, na maneira em que era tratada e vista, e principalmente, sobre o que eu não sabia nomear, mas sentia. Sabe, leitora, como aquela lista de meninas bonitas da turma, adivinhe em qual eu estava? E mais, é sobre um corpo que foi violado, assim como o da personagem.

O desejo de Pecola por “olhos azuis”, é a busca incessante que muitas de nós travamos desde pequenas para sermos consideradas bonitas, nos levando a alisarmos os cabelos, escondermos os nossos traços, nos agredindo de diversas maneiras para sermos uma “menina bonita”, mas, mais do que isso, para sermos amadas e aceitas. 

É na maneira como a autodepreciação aparece para Pecola, é no modo como o racismo e o sexismo se articula em nossas vidas que a potência do romance deve ser apreciada, na janela em que observamos Pecola, podemos mirar-nos, e nos curarmos. Digo isso como uma criança negra, que ao buscar o amor e a aprovação, violentou o corpo de todas as maneiras possíveis. Hoje, essas recordações encontram-se com uma mulher negra adulta, consciente, educadora, pesquisadora e poeta, que fica vasculhando palavras para construir mundos, e que transborda de amor. Mas o racismo é rasteira constante em nossas vidas, e é quando revisito as minhas memórias de criança – experiência sentida a partir da leitura do romance – “seguro as minhas mãozinhas, encaro os meus grandes olhos negros, beijo a minha testa, e susurro em meu ouvido que é nos meus cabelos em que guardo os segredos da vida, por isso crespos e volumosos”. Eu diria: “São galáxias, Josi!” e consigo imaginar o meu sorriso doce, leitora, assim, eu me curo.

 

o que fica naquele cantinho que eu escondo? e que você me mostra? 

querida Pecola, escrevo assim, como se dispusesse nessas linhas

todos estes pensamentos que me invadem a cabeça 

como naquele dia que nos encontramos 

pelas também linhas 

olha só Pecola, eu te chamo, na esperança que nos ouçam e que sejamos lidas 

e que outras meninas também venham brincar 

em nossa roda de possibilidades 

porque é isso que nós criamos nos nossos silêncios e nas nossas dores

possibilidades

venha Pecola, não tenha medo 

venha brincar comigo

juntas, deixaremos que os nossos cabelos enfeitem as nossas cabeças como rainhas 

de reinados antigos 

ancestrais coroam os nossos cabelos com lindas flores 

porque somos rainhas, querida Pecola 

de um reino tão tão distante mas real

venha querida Pecola, venha comigo

venham comigo

 

Converso contigo porque tenho consideração, e anelo para que durante a leitura da obra se encontre com Pecola e reencontre com você quando criança. Estendo este convite a qualquer leitora curiosa, e já digo, a minha costura é a minha conversa com Pecola, é o meu abraço. Mas também é falatório contigo, e especialmente, é um chamado ao legado literário de Toni Morrison.

 

 

* O grupo é coordenado pela professora Dra. Fabiana Carneiro da Silva – (UFPB). Mais informações no email: tessiturasnegras@gmail.com ou @tessiturasnegras.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Josi Santos é poeta, graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB,  pesquisadora de literatura contemporânea, curadora do Sarau Não Cale a Arte (@naocaleaarte), e idealizadora do projeto poético @maisdesejodoquegente, no Instagram e no Medium. Criada no interior da Bahia, tem passos antigos e muito sangue no olho.

 

 

 

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