Meu nome não é Maria

por Telma Braga

 

Poucas coisas eu sabia a respeito de Maria. Apenas que se chamava Maria, que era “índia”,  que foi “pega a laço” por um tataravô e que ele a fez sua “esposa”.

O curioso é que levei tempo para perceber que nenhuma delas era verdade. E quanto percebi, ouvi um grito:

– Meu nome não é Maria!

Esse grito me sacudiu e senti vontade de buscá-la. Sonhei muito à sua procura. Percorri as margens do Paraíba na esperança de que suas águas me contassem do seu cheiro. Andei entre plantas, imaginando que ervas que me trariam sua lembrança, mas ela não estava lá. No entanto, sinto que preciso, preciso muito desenterrá-la. Não  os seus ossos. Mas a sua carne.

– Meu nome não é Maria!

É só o que consigo ouvir. Queria tanto conhecê-la! Por que ela não fala comigo? Por que não se revela para mim? Só consigo ouvir esse grito. Ele se repete pela terceira vez e, de repente, tudo faz sentido: nunca vou encontrá-la se continuar procurando por Maria. Seu nome não é Maria. Faço silêncio em mim.

Para desenterrar minha tataravó, preciso enterrar Maria.

Lentamente tiro seu vestido, suas anáguas, seu escapulário e seu brinco de pérola. Liberto seus cabelos do coque e seus pés dos sapatos apertados. A mulher nua a minha frente sorri, livre, plena e eu choro. Peço desculpas por tê-la chamado de Maria durante tanto tempo e por ignorar tudo a seu respeito. Fazemos uma fogueira e queimamos as roupas de Maria.

Finalmente ela me conta sua história. Seu povo, os Puri, viviam felizes no mundo de cima, mas gostavam muito das flores e frutos da árvore sapucaia. Então, sempre desciam até o mundo de cá por um dos galhos dessa árvore que ligava os dois mundos para colherem seus frutos. Certa vez, quando estavam aqui, o galho quebrou e nunca mais conseguiram voltar. Os homens brancos, então, os dominaram e aos poucos foram se esquecendo dos costumes e da própria identidade.

Ela vivia em uma das últimas aldeias daquela região, entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Um dia, foram atacados. As mulheres novas raptadas e levadas a fazendas e sítios dos homens brancos que as violentaram. Algumas foram mortas. Outras, como ela, passaram a ser chamadas de “esposas”, que no fundo era um jeito diferente de dizer “escravas”.

Cobriram sua nudez, tiraram seus enfeites, apagaram suas pinturas sagradas e proibiram que falasse a língua Puri. Feriram seus deuses com uma cruz e por fim arrancaram seu nome, o nome que seus pais lhe deram. Passaram a chamá-la Maria.

– Vó, e qual é o teu nome? Eu pergunto.

– Txuri Poteh.

– O que significa?

– Estrela de luz.

Nos calamos um momento e Txuri Poteh começa a entoar um antigo canto:

-“Ho, ho, bugari, itanaji/ gwaxantl’eh, gwaxantl’eh/ ha, ha  kanjana / maxê tximbá”.

 




 

 

 

 

Telma Braga é filha de Seu João, contador de causos, e de Dona Lydinha, contadora da vida.
Professora, contadora de histórias, escritora.
Pós-graduanda d’A Casa Tombada nos cursos O Livro para a infância e Narração artística.

Mestre em Língua e Literatura Francesa pela UFRJ.
Aluna especial no PPGCEN -UNB, aspirante ao Doutorado em Artes Cênicas.
Mas principalmente conversadora, escutadora de passarinhos e abraçadora de árvores.

Apaixonada por dar aulas, cantar, viajar, escrever, ler, brincar e tomar café com os amigos, nem sempre nessa ordem.
Já ministrei várias oficinas de poesia para crianças, jovens e professores.
Costumo dizer como Riobaldo: “quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”

Contato: @telmaalmeidabraga

Aquarela de Meire de Oliveira. (@aquarelistameire)

 

Obs.: Texto de reconstrução poética de memórias, elaborado na aula da Professora Sandra Lessa, na Pós-Graduação de Narração Artística, turma 16.

 

 

 

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