Gratidão, Jaider

por Angela Pappiani

 

Jaider foi embora ontem. Decidiu partir sem avisar. Fiquei no ar, em suspenso, tentando acreditar que era mais uma performance, mais um gesto político e artístico para fazer tremer nossas tripas e acordar o coração. Talvez seja isso mesmo. Em toda intensidade desse ser abençoado pelo avô Makunâima.

 

Ele tinha a idade de minha filha mais velha, mas seu corpo transcendia as idades. Poucas vezes o vi como um filho, capaz de colo e acalanto. O via mais como o avô sábio, que percorreu caminhos e tempos e trazia no olhar todas essas manhãs vividas e nas mãos todas as possibilidades de criação. Me admirava sempre com sua calma e lentidão de gestos enquanto a cabeça girava à velocidade da Terra em torno do sol, criando o tempo todo, palavras, textos, gestos, desenhos, pinturas, cantigas, sopros, rezos, risos. Conseguia ser tão leve e simples e líquido e ao mesmo tempo rocha, denso, imenso, tão poderoso, no domínio de linguagens, estratégias, territórios, ferramentas, armas. Diplomata e guerreiro, artista e xamã, amigo e vingador, amoroso e contundente, flecha certeira e flor, homem, velho, menino, espírito, alma.

 

Jaider era sementes brotando vigorosas, sem cessar, cobrindo o solo e gerando força e alimento, beleza para os olhos, frescor para o ar.

 

Por alguma razão que não entendo escolhemos o dia de ontem para nosso primeiro passeio em família: filha, netas, tia adotada. E decidimos visitar a Bienal para que as crianças que carregam no sangue e no espírito os ancestrais indígenas vissem a ocupação bonita que esses povos fizeram naquele lugar tão grande, tão carregado de herança colonial, onde se diz que se mostra o que há de melhor da arte do mundo.

 

O colar que escolhi para o dia foi o de madeira entalhada que comprei de Jaider em 2019, no dia em que fomos com Vó Bernal para um ritual de canto, fogo, fumaça e cura em A Casa Tombada. Memórias desse dia seguem iluminando as paredes da nova Casa.

 

O nome de Jaider esteve presente o dia todo de ontem. Falamos de sua arte, de seu caminho, de suas conquistas. Naná, minha netinha de 3 anos, que quando bebê apontava o dedinho pedindo para ver de perto uma pintura de Jaider na parede da sala e ficava tempos olhando cada detalhe, se acalmando do choro, não gostou das obras que retratam os Kanaiman e de esparramam por uma parede inteira no terceiro piso da Bienal. Disse que era feio e dava medo, olhou de longe e correu. Esses espíritos são assustadores mesmo. Para acalmar, vieram os peixes Maxacali, os totens, os vestidos dançando em roda.  Foi quando recebi a notícia pelo celular, de um jeito muito suave e encantado e preferi não entender. A tarde estava tão bonita, tão cheia de afetos e belezas, plena de gratidão pela ocupação de um espaço simbólico com o espírito e a força dos povos originários, povos verdadeiros, gente que segura o céu para não desabar.

 

Mas veio a confirmação que ainda não quero aceitar. Meu céu desabou ontem e estou num esforço imenso para erguê-lo de novo. O corpo desse amigo voou para sua terra natal. Seu espírito voa e voará como vó Bernal e Makunaima. Seu ensinamento, coragem, ousadia, sua palavra, sua arte ficam para ajudar a erguer e reerguer o céu sempre que ele desabar. Gratidão Jaider, por tudo.

 

 

Angela Pappiani

03/11/2021

 

.