por André Gravatá
Venho contar de um ato poético sobre tempos estreitos e palavras insurgentes. Uma tentativa de abrir espaço para o não saber por meio do encontro com palavras e pessoas.
Em junho de 2018, a convite do Instituto Tomie Ohtake, criei um ato poético na exposição “Alucinações Parciais”, com um poema intitulado “Não nos acostumemos”. Algumas palavras do poema vieram de um chamado que fiz nas redes sociais provocando as pessoas a completarem a frase: “Que não nos acostumemos com…”.
No dia do ato/performance coletiva, estavam disponíveis centenas de faixas com o poema impresso e as pessoas que chegaram foram convidadas a se envolver no que chamo de “leitura emaranhada”: caminhavam pelo museu lendo o poema em voz alta das mais variadas maneiras — cantavam, gritavam, inventavam outros poemas a partir daqueles versos, repetiam apenas uma palavra enquanto caminhavam… Ler, reler, rereler, inventar, não saber por onde ir e ainda assim ir. E as vozes das pessoas se emaranhavam umas nas outras e no espaço, enquanto visitantes do museu eram surpreendidos com a situação e até as telas ao nosso redor, de Dalí, Tarsila, Picasso, Anita Malfatti, entre outras, nos encaravam com espanto.
A imagens que compartilho a seguir são do fotógrafo Ricardo Miyada, que acompanhou o ato poético no dia, e contam da palavra que movimenta a voz e os corpos em direções desconhecidas. Vale destacar um agradecimento à Serena Labate e ao Felipe Arruda por todo o apoio.
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NÃO,
não nos acostumemos,
não nos acostumemos com palavras escassas de
medula,
ocas por dentro e por fora.
não nos acostumemos
com palavras com corpos de lâminas.
embrutecimento:
a normalidade é
inaceitável, meu amor.
a cada segundo que a vida normal dilacera,
rude,
devorando corpos, proliferando calos,
morre em nós a sutileza,
aquela vastidão que não se compra.
não nos acostumemos com a indelicadeza.
a manchete do dia: aniquilaram tantos,
tantas,
alguns nem entraram na conta.
e agora um intervalo comercial:
para esquecer a raiva na saliva,
para esquecer que esquecemos tanto
e nem sabemos mais o que lembrar ao acordar.
enquanto isso,
a palavra liberdade
perambula
pelas ruas
à procura de uma substância, significado,
pelo menos uma
fibra
firme,
como se uma pipa
olhasse
para trás
para confirmar
se há ainda alguém que segura sua
linha.
e o que a palavra liberdade encontra,
estreiteza pronta,
não dá conta
do que ela ainda pode ser.
um temporal começa,
as pipas se escondem,
um carro espalha a
poça
de
chuva
nas pessoas no ponto de ônibus.
fale com o motorista apenas o indispensável,
diz o aviso
no ônibus
que não explica o significado
de indispensável.
indispensável é caminhar.
perguntar: tem alguém aí?
tem alguém aqui?
indispensável é a corrente de ar.
e a cada segundo que a vida normal dilacera,
rude,
devorando corpos, proliferando calos,
morre em nós a sutileza,
aquela vastidão que não se compra,
aquela água que em nós germina.
não nos acostumemos com o arame farpado
que nasce tanto de fora pra dentro quanto de
dentro pra fora.
não nos acostumemos com as distâncias,
fartura de afastamento,
terra ociosa no espaço
entre a palavra e o passo.
porque a cada segundo desacostumado
se desdobra em nós a sutileza,
a poesia,
aquela vastidão que não se compra,
aquela água que em nós germina,
aquela ternura voraz.
* André Gravatá é autor do livro Inadiável e O jogo de ler o mundo. Coautor de Volta ao mundo em 13 escolas e Poéticas Públicas. É um dos criadores do Jornal das Miudezas e da Virada Educação.
Nos dias 2 e 3 de fevereiro, André estará n´A Casa Tombada Nuvem com o curso O não saber na poesia. Para saber mais, clique em: https://acasatombada.com.br/02-02-22-o-nao-saber-na-poesia-com-andre-gravata/